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O Jogo do Mundo (Rayuela)
Obra-prima de Julio Cortázar, Rayuela é uma das narrativas que mais influenciaram os escritores latino-americanos da segunda metade do século XX. Que só agora seja publicada em Portugal, com 45 anos de atraso, diz bem da indiferença a que foi votada no nosso país, durante muito tempo, alguma da melhor literatura estrangeira. Saúde-se então a Cavalo de Ferro pela iniciativa de suprir esta imperdoável lacuna, ainda por cima numa magnífica tradução de Alberto Simões, que resgata quase sem mácula a força poética, o fôlego e a cadência da prosa torrencial do escritor argentino. Eis, desde já, a par de O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil (Dom Quixote), um forte candidato a livro do ano.
O enorme impacto de Rayuela (à letra, o infantil “jogo da macaca”, desenhado no chão com giz; imagem recorrente em vários dos planos narrativos) deveu-se sobretudo ao seu experimentalismo formal. Como se diz logo de início numa “tábua de orientação”, o livro “é muitos livros”, na medida em que a ordem pela qual devem ser lidos os seus 155 capítulos depende apenas da vontade (ou dos caprichos) do leitor. Cortázar sugere duas escolhas possíveis: 1) começar no primeiro capítulo e acabar no 56, seguindo o esquema habitual, o que implica prescindir do último terço do livro; 2) ler a obra na íntegra, mas seguindo uma sequência irregular de capítulos: 73, 1, 2, 116, 3, 84, etc. Na verdade, qualquer ordem é válida (mesmo a leitura de trás para a frente), o que multiplica as abordagens possíveis a esta ficção aberta.
Dito isto, há três núcleos principais a que os fragmentos narrativos se agregam. Na primeira parte, ‘Do lado de lá’, acompanhamos a vida do argentino Horacio Oliveira em Paris, onde se apaixona por uma uruguaia (Maga), discute interminavelmente com um grupo de amigos artistas (O Clube da Serpente) e encontra, por mero acaso, o seu escritor-guru (Morelli). Na segunda parte, ‘Do lado de cá’, Horacio regressa a Buenos Aires, reencontrando um velho amigo (Traveler, que se revela uma espécie de duplo), a mulher deste (Talita, na qual projecta a memória de Maga) e uma galeria de personagens secundárias, com as quais se cruza primeiro num circo e depois num manicómio. Por fim, a terceira parte, ‘De outros lados’, compõe-se de 99 “capítulos prescindíveis”, onde cabe tudo e mais alguma coisa: citações de pensadores e poetas, notícias de jornal, notas do acervo de Morelli, pequenos ensaios, aforismos ou episódios soltos que ajudam a esclarecer certos factos e a definir traços psicológicos.
Mesmo quando arrisca mais, ao narrar uma cena erótica com palavras inventadas (o “gíglico”, dialecto dos amantes) ou ao fundir dois textos num só (em linhas alternadas), Rayuela nunca soçobra na mera pirotecnia, no virtuosismo estéril.
No fundo, não há nada que o livro enjeite, na sua ânsia de absorver, por exemplo, a cidade de Paris – esse novelo de “matéria infinita enrolando-se sobre si mesma”, logo transformada numa “enorme metáfora”. Como diz alguém: “Tudo é literatura, isto é, fábula.” À semelhança de Morelli, que sonha escrever uma obra “onde o micro e o macrocosmos se unissem numa visão fulminante”, assumindo o “texto desalinhado, desordenado, incongruente, minuciosamente anti-literário (mas não anti-romanesco)”, Cortázar vai contra os “hábitos mentais” e rebenta com as fórmulas clássicas de contar uma história, consciente de que é preciso “desescrever” e “incendiar a linguagem”, para a libertar. Algo que só se consegue com a cumplicidade do leitor, arrancado à força da sua tradicional atitude passiva.
Mesmo quando arrisca mais, ao narrar uma cena erótica com palavras inventadas (o “gíglico”, dialecto dos amantes) ou ao fundir dois textos num só (em linhas alternadas), Rayuela nunca soçobra na mera pirotecnia, no virtuosismo estéril. Romance de ideias (não apenas literárias), muitas das suas reflexões mantêm uma impressionante actualidade e algumas delas anteciparam mesmo agitações futuras. Como quando Cortázar questiona, cinco anos antes do Maio de 68: “E o que é que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, deixar-se cair em si mesmo com uma tal violência que a queda acabasse nos braços do outro.”
Esta é uma versão longa da crónica publicada no n.º 70 da revista Ler, retirada, com a autorização do autor, do Blog Bibliotecário de Babel
Rayuela, modo de usar
(Texto publicado no suplemento Actual do Expresso)
Logo no início do romance Rayuela, finalmente editado em Portugal pela Cavalo de Ferro (com um atraso de quase meio século), Julio Cortázar oferece ao leitor uma “Tábua de orientação” onde explica que o seu livro “é muitos livros”. Os 155 capítulos desta narrativa não-linear podem ser percorridos como se queira: tudo de seguida, aos saltos, do fim para o princípio, aleatoriamente ou até deixando de lado uma parte inteira (há 99 capítulos considerados “prescindíveis” pelo autor). Não apenas por isto, mas também por isto, Rayuela – que se converteu em O Jogo do Mundo na excelente tradução de Alberto Simões – abre a porta a uma experiência literária singular e talvez única, porque a ordem da leitura que escolhermos (uma entre milhares de possibilidades) pode não ter sido escolhida por mais ninguém.
Para evitar que os leitores se assustem com o livre arbítrio, habituados que estão desde sempre a seguir um fluxo narrativo pré-determinado, Cortázar sugere desde logo duas opções: ou a leitura no modo tradicional até ao capítulo 56 (esquecendo os exercícios meta-literários da terceira parte) ou seguindo uma cábula que fixa uma espécie de ziguezague (começa-se no capítulo 73, depois vem o 1, o 2, o 116, o 3, o 84, o 4, o 71, etc.). Ao optar por este último, quis testar o caminho sugerido pelo autor mas o sistema trocou-me as voltas. No fim de cada capítulo, aparece entre parêntesis o número do capítulo para o qual se deve saltar. Por exemplo, ao acabar o 152, Cortázar envia-nos para o 143; mas eu, nem sei bem como, fui parar ao 144 e quando dei pelo lapso, mais à frente, a minha leitura já tinha divergido consideravelmente da pista oficial.
Histórias destas são comuns entre os leitores de Rayuela, essa imensa confraria de cúmplices que alguns fazem questão de transformar, abusivamente, em sociedade secreta – com rituais de iniciação e um culto quase religioso ao grande Cronópio Cortázar. Entre os exercícios a que os fãs se entregam, destaca-se a escolha do capítulo preferido. Há os que preferem a prosa poética do 7 (“Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão”), outros inclinam-se para o 68 (cena de sexo narrada em glíglico, um dialecto de palavras inventadas) ou para o terrível 28 (em que morre um bebé e os amigos adiam a revelação da notícia à mãe, mergulhando em discussões filosóficas durante 25 páginas). Por mim, escolho o 23. Não porque seja o capítulo em que Horacio Oliveira, o protagonista, primeiro depara com Morelli (escritor-guru e teórico da literatura, porta-voz das ideias de Cortázar), quando este ainda não passa de um velhote desconhecido, atropelado por um autocarro, nem porque nele se faz a mais deliciosa paródia à música contemporânea (através da figura de Berthe Trépat, pianista e compositora), mas antes porque abre com a meticulosa descrição do que Oliveira observa enquanto está “parado numa esquina” de Paris: pedreiros ao balcão do café, uma mulher à janela, um clochard, uma vendedora de lotaria no seu cubículo.
Lembrei-me imediatamente da Tentative d’épuisement d’un lieu parisien, texto em que Georges Perec enumera, como um entomólogo, tudo o que aconteceu na Place Saint-Sulpice, entre 18 e 20 de Outubro de 1974. E também me lembrei (lembrar é talvez o mais perequiano dos verbos) do monumental A Vida Modo de Usar. Publicado em 1978, quinze anos depois de Rayuela, eis um monumento com 99 capítulos (nenhum deles prescindível), que também se pode ler de várias maneiras e não é apenas um romance, mas sim muitos “romances”, como de resto Perec o subtitulou. Se Rayuela é um livro-mandala, que faz de Paris e Buenos Aires duas faces da mesma moeda, A Vida Modo de Usar é um prodigioso mosaico que cruza dezenas de histórias e personagens num prédio da imaginária rue Simon-Crubellier. Na estrutura de Rayuela paira a imagem do jogo da macaca (desenhado a giz no chão, entre a Terra e o Céu); no livro de Perec a do puzzle a que falta sempre uma peça. Ambas são ficções devoradoras da realidade inteira do mundo: ultra-romances, hiper-romances, supra-romances.
Sim, lembrei-me de Perec ao ler Cortázar. E perguntei-me se os dois alguma vez se terão encontrado por mero acaso, no Pont des Arts. Provavelmente não. Mas tenho a certeza que Horacio e a Maga, que nunca combinavam os seus encontros, foram várias vezes tocar às campainhas do n.º 11 da rue Simon-Crubellier, acompanhados das restantes personagens do argentino (o Clube da Serpente em peso). E alguém lhes abria a porta, sempre.
Autor: Julio Cortázar
Título original: Rayuela
Tradução: Alberto Simões
Editora: Cavalo de Ferro
N.º de páginas: 631
ISBN: 978-989-623-079-1
Ano de publicação: 2008
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