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Nasceu o capitalismo sensato?

A nacionalização de instituições financeiras norte-americanas e inglesas é um "internamento" temporário, para estancar hemorragias antes de devolver os pacientes ao casino. Mas também é certo que estas nacionalizações instalam, como há décadas não havia, um debate estratégico no campo da economia.
As intervenções de governos e bancos centrais, na tentativa de contenção da crise financeira, impressionam pela sua dimensão (realizou-se em Setembro de 2008 a maior nacionalização da história do capitalismo, 85 biliões de dólares) e pela sua insuficiência (a crise continua a dissipar injecções maciças de dinheiro público). Todavia, no essencial da sua natureza, estas intervenções não constituem novidade absoluta: a socialização das perdas ou das fraudes do capital tem sido uma das tarefas mais importantes do Estado liberal, concretizada perante deslocalizações, falências fraudulentas, etc.
Na presente crise, torna-se especialmente evidente a transferência de riqueza da economia produtiva e do trabalho (impostos) para o capital financeiro. Seja na medicação dos especuladores desnorteados (injecções de liquidez), seja na cobertura da sobrevivência do valor das empresas (nacionalização do Northern Rock, Fanny Mae, AIG...).
Essa evidência brutal, diariamente apresentada pelos media mundiais, ameaça o mito da auto-regulação dos mercados e o dogma da austeridade, agora subvertidos pela generosidade estatal. E abre um debate global sobre emergência social. Os recursos mobilizados para salvar accionistas em crise sempre estiveram disponíveis, mas foram recusados às necessidades urgentes da nossa época. Esse sequestro da riqueza pública nunca foi tão escandaloso. Para a esquerda socialista que mobiliza opiniões e movimentos, a hora é de reforçar a exigência de políticas públicas: na Europa do BCE, urge um plano de investimento para enfrentar a alta do custo de vida e o desemprego; nos Estados Unidos, para acudir à ausência de saúde pública; em Portugal, para financiar um regime de reformas dignas.
Por outro lado, é certo que a nacionalização de instituições financeiras norte-americanas e inglesas é um "internamento" temporário, para estancar hemorragias antes de devolver os pacientes ao casino. Mas também é certo que estas nacionalizações instalam, como há décadas não havia, um debate estratégico no campo da economia. Tal debate pode morrer à nascença, se ficar preso a "novos consensos" e à afinação de instrumentos que tornem o capitalismo mais regulado e previsível. Mas pode também, pelo contrário, desenvolver-se uma disputa de fundo, em torno do modelo económico e da propriedade social. Na banca como nos combustíveis, por exemplo: perante a crise climática, o mundo deve render-se à rentabilidade privada de um sector com lucros astronómicos (arriscando aliás a criação de novas bolhas financeiras com o comércio de carbono) ou deve optar por nacionalizações que revertam esses recursos para políticas ambientais activas?
É divertido assistir à apressada conversão dos fanáticos liberais a um "capitalismo sensato". Mas a ideologia do mercado livre e da austeridade orçamental não tardará a sair do buraco onde hiberna por estes dias, pronta para apresentar aos mais fracos novas facturas da presente crise. A resposta à instabilidade do capitalismo global passa pelas questões da propriedade pública, da capacidade de planificação e intervenção social. O descrédito do liberalismo convoca as verdadeiras alternativas.
Jorge Costa
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