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Habitação: uma questão europeia?
‘O princípio europeu de subsidiariedade está a constituir um obstáculo à resolução do problema português dos bairros de lata’: assim concluía, em 1996, um relatório encomendado pelo Parlamento Europeu à Direção Geral de Investigação da União Europeia (UE). A introdução do relatório titulava com a pergunta que se encontra no título deste artigo: é a habitação uma questão europeia? Na altura, o Parlamento achava que sim, em conflito com a Comissão e o Conselho, que consideravam que a habitação devesse ficar nas mãos dos Estados Membros. Como muitas vezes acontece na história da União Europeia, prevaleceu a opinião do Conselho – ou seja, dos Estados – e a habitação nunca foi reconhecida como uma competência da UE.
Contudo, importa lembrar que o setor da habitação está interligado com muitos outros setores, alguns de competência da UE (como política económica e mercados financeiros), outros onde a UE sempre foi ativa (como o ordenamento do território): terá a UE, através da sua ação nesses outros setores, influenciado as políticas de habitação? Em 2006, John Doling julgava existir uma política “furtiva” de habitação exercida pela UE através do setor financeiro: por exemplo, ao liberalizar os mercados dos empréstimos, a UE estava a fomentar a propriedade em detrimento do arrendamento.
E Portugal? Terá a UE tido algum papel nas suas políticas? Foi essa a pergunta que tentamos responder num artigo recente, em coautoria com Marco Allegra, João Ferrão e Alessandro Colombo. Ao olhar as políticas de habitação nacionais no longo prazo e a sua relação com as dinâmicas, políticas e regulações europeia, conseguimos encontrar muitos canais de influência. A maioria desses canais são indiretos ou até implícitos:
- as ambições das classes dirigentes em adequar o país a um modelo de “modernidade” europeia, que foram, por exemplo, cruciais na escolha de lançar o Programa Especial de Realojamento para “acabar com as barracas”, consideradas incompatíveis com um Portugal plenamente europeu;
- até ao início dos anos 2000, o papel da estabilidade financeira e das baixas taxas de juros consentidas pela adesão ao mercado único europeu, que fomentaram a política nacional – lançada por Cavaco Silva mas nunca repudiada pelo Partido Socialista – de privilegiar o suporte à aquisição de casa própria em detrimento da habitação pública;
- a influência das ideias europeias sobre políticas urbanas – por exemplo, a crescente preocupação com regeneração urbana a partir do final dos anos ’90.
Um outro canal de influência tem a ver com a história das políticas de austeridade europeias, evidente, já no longo prazo, na dominação das políticas monetaristas e o seu efeito sobre o estado social dos Estados Membros. É, porém, nos anos da crise, austeridade e Troika, que se verifica o impacto mais direto das políticas europeias de austeridade, com a imposição de medidas com o fim explicito de reestruturar o sistema da habitação, que foram cruciais para abrir o caminho à especulação – o exemplo mais evidente é o requerimento, pelo Memorando de Entendimento (na página 87), de terminar os controlos das rendas, implementado com o Novo Regime de Arrendamento Urbano (também conhecido como Lei das Rendas ou Lei Cristas, sua promorora).
Em suma, a existência de um papel da UE na determinação da trajetória das políticas portuguesas de habitação é inegável. E, embora caraterizado por muita ação indireta e muitas contradições, o seu impacto foi sobretudo no sentido de empurrar para o suporte à habitação de propriedade e de limitar a intervenção direta do Estado. Na distinção entre estado social universal ou residual, a UE não tem empurrado na direção do universal – e, em outros Estados com políticas mais universais, tem até pressionado para uma residualização das políticas[2]. E, portanto, embora as crises da habitação que se espalham pela Europa fora, inclusive a portuguesa, tenham as suas raízes históricas nas dinâmicas específicas de cada Estado, podemos concluir que a Europa pouco fez para preveni-las; antes pelo contrário.
Será possível imaginar uma mudança de paradigma que faça da UE um ator da construção de políticas de habitação universais? Podemos vislumbrar algumas novidades em iniciativas como a Parceria pela Habitação na Agenda Urbana da UE, ou o Pilar Europeu dos Direitos Sociais aprovado pela Comissão, que inclui a habitação entre os direitos fundamentais: novidades ainda frágeis e com pouco impacto concreto, que porém testemunham a emergência de novas e diferentes sensibilidades[3]. Será possível empurrar uma nova temporada onde a coesão territorial, que se encontra nos tratados europeus ao lado – e ao mesmo nível! – da estabilidade financeira, possa ser utilizada como princípio para uma diferente atitude para com o estado social, e a habitação? A questão é puramente política, o desafio é das esquerdas e da sua capacidade de organizar-se ao nível continental.
Simone Tulumello é investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universodade de Lisboa.
Notas:
[1] Ver a secção geral em www.europarl.europa.eu/workingpapers/soci/w14/text1_en.htm e os casos nacionais, inclusive Portugal, em https://www.europarl.europa.eu/workingpapers/soci/w14/text2_en.htm.
[2] O caso mais evidente talvez seja o dos Países Baixos, onde tradicionalmente o Estado tem suportado as Associações de Habitação, entidades não lucrativas que gerem uma grande percentagem do património habitacional, proporcionando habitação a custo baixo para as classes mais pobres e acessível às classes médias. A seguir de um longo conflito legal, fundado na definição dos Serviços de Interesse Económico Geral, os Países Baixos aceitaram suportar as Associações só para fornecer habitação à famílias pobres. Ver https://union-habitat-bruxelles.eu/social-housing-sgei-legal-analyse-ecj....
[3] Ver, por exemplo, este artigo do João Ferrão https://ambienteterritoriosociedade-ics.org/2018/01/17/a-habitacao-regre....
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