“Esta é uma guerra que, entre nós, nunca existiu”

Para que a memória não se apague, e para desconstruir alguns dos mitos que ainda persistem sobre a Guerra Colonial, vale a pena (re)visitar o livro “Nó Cego”, de Carlos Vale Ferraz. A nova edição desta obra foi apresentada em Lisboa e sobre ela conversaram o autor, António-Pedro Vasconcelos e João de Melo. Por Mariana Carneiro.

13 de outubro 2019 - 17:42
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Imagem que figura na capa da última edição do livro Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz.
Imagem que figura na capa da última edição do livro Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz.

A nova edição deste clássico da literatura portuguesa, publicado, pela primeira vez, em 1982, teve lugar na livraria Ferin, na passada terça-feira, dia 19 de junho. Carlos Vale Ferraz, pseudónimo literário de Carlos de Matos Gomes, escolheu para falar sobre o seu livro duas pessoas que “têm uma relação pessoal com o romance”: o escritor João de Melo e o cineasta António-Pedro Vasconcelos.

João de Melo, identificado pelo autor como “o primeiro escritor com a noção da importância da Guerra Colonial na Literatura Portuguesa”, além dos vários livros publicados, como Autópsia de um Mar de Ruínas (1984), organizou a primeira grande antologia de textos sobre a Guerra Colonial (Os Anos da Guerra - Os Portugueses em África - 2 volumes) e introduziu o conceito de “geração da Guerra Colonial”. O escritor já tinha sido escolhido por Carlos Vale Ferraz para apresentar a obra Os Lobos Não Usam Coleira, que veio a ser adaptada ao cinema por António-Pedro Vasconcelos com o título Os Imortais.

O cineasta, cuja obra é alvo de uma retrospetiva na Cinemateca até ao final de julho, dedicou outros filmes, como Adeus, Até ao Meu Regresso, ao tema da Guerra Colonial. Carlos Vale Ferraz sublinhou a “sensibilidade e a acuidade” de António-Pedro Vasconcelos “sobre a realidade portuguesa, sobre aquilo que é importante na história portuguesa, e sobre, porventura, aquilo que é importante na literatura portuguesa”.

Nota inicial do livro Nó Cego, introduzida por Carlos Vale Ferraz:

"Esta é uma obra de ficção. Factos, pessoas e situações narradas não aconteceram nem existiram, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Pormenores eventualmente chocantes dizem respeito a outras gentes e a tempos em que a guerra era suja, mas povoada por humanos combatentes; a real verdade foi outra, vejam-se as fotografias e leiam-se os discursos da época, limpas e gloriosas ações representadas por magníficos heróis".

 

“A descoberta do Nó Cego é também a descoberta do outro”

João de Melo referiu, durante a sua intervenção, que este é um “livro tão importante e tão fundamental”, no qual se aborda “a nossa experiência traumática da guerra mas não apenas traumática, também histórica, de fim de ciclo de algo que é do domínio da história da expansão portuguesa”.

O escritor identificou Carlos Vale Ferraz como um “investigador competentíssimo e trabalhador incansável desta (re)descoberta daquela África oculta onde nós mergulhámos, da história da Guerra Colonial, dos antecedentes, do decurso e do pós -guerra”.

João de Melo salientou que “a descoberta do Nó Cego é também a descoberta do outro, da pessoa e das razões do outro”: “Não há literatura possível cuja autenticidade não repouse nesta ideia do nós e do outro. E, sobretudo, de uma guerra de guerrilha carregada ela própria de ideias e de ideologia. Por um lado, as lutas de libertação nacional, a luta pela independência, de uma mudança, e, do lado de cá, a luta pela manutenção do tal 'colonialismo sem império', como dizia o Eduardo Lourenço”, avançou o escritor.

A este propósito, João de Melo recordou uma passagem do livro em que um comissário político da FRELIMO “tem um curiosíssimo diálogo com o capitão”, um diálogo, portanto, entre “um prisioneiro e aquele que pretendia ter razão”, e que, “para nós leitores, é uma revelação”.

Para os que estiveram na Guerra e levavam “tempos infinitos para conhecer o guerrilheiro”, este era “um ser invisível e, 'quando não se tem imagem, não se é'”, disse. No caso de João de Melo, o guerrilheiro passou a ser imaginado como “o anjo da guerrilha, o ser luminoso que tinha a força, a energia e a coragem para se debater pela sua terra, o ser mítico”, até se confrontar com a sua humanidade.

De acordo com o escritor, o Nó Cego é uma “espécie de paráfrase da Operação Nó Górdio, que se destinava a estrangular a FRELIMO no Norte de Moçambique - uma ideia 'absolutamente genial' do general Kaúlza de Arriaga que garantia que a Operação Nó Górdio ia acabar com a Guerra e a FRELIMO iria ser dizimada”. Como destacou João de Melo, “a operação Nó Górdio acabou por ser um fracasso a nível militar e é da assunção desta consciência que se faz também o Nó Cego”.

“Um livro de uma profunda honestidade”

António-Pedro Vasconcelos assinalou que o Nó Cego é “o grande livro sobre a Guerra Colonial, um livro de referência”, lamentando os constrangimentos com que se confrontou ao tentar transformá-lo em série televisiva, nomeadamente no que respeita à falta de resposta da RTP ou à recusa de colaboração por parte das Forças Armadas.

O cineasta leu o Nó Cego “avidamente” e recorda-se “da emoção e da impressão extraordinária que teve ao ler o livro”, que o fez invocar imediatamente a obra Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer.

António-Pedro Vasconcelos, Carlos Vale Ferraz e João Melo. Foto de José Morais.

Para além da “sucessão de situações dramáticas cinematográficas”, António-Pedro Vasconcelos referiu que o Nó Cego é “de uma profunda honestidade”.

De acordo com o cineasta, a obra revela “o respeito pelo inimigo mas, ao mesmo tempo, o conflito que é vivido, com muita honestidade, por alguém que compreende as razões do inimigo mas que tem de fazer a guerra e, sobretudo, tem de defender os seus homens. Alguém que está entre os seus superiores, que muitas vezes não respeita e considera que têm um comportamento e ordens absurdas, e os homens que estão em baixo, que dependem de si”.

Uma geração de viragem de um ciclo histórico”

Referindo-se a quem viveu a guerra, João de Melo frisou que “toda a nossa experiência de guerra foi uma revelação e um corpo estranho que nos transformou e que ainda está em nós, na nossa pele”

Guerra é guerra. Não há guerras boas e quem vai para elas vai de uma maneira e volta de outra. Como pessoa, como homem, até como escritor, se já o era”, sinalizou.

Foto de José Morais.

O escritor salientou, contudo, que estamos perante “uma geração de viragem de um ciclo histórico”.

“Portugal era historicamente um país de partidas”, onde “o regresso praticamente não existia” e esta foi “a geração do regresso. Porque partimos e voltámos. Para dar eco e notícia daquilo que era e daquilo que tinha de deixar de ser”, adiantou João de Melo.

O escritor acrescentou que, se durante quase 500 anos, foi construída uma ideia de Portugal ser um grande império, uma grande nação, alimentada no tempo do salazarismo, tratava-se de desconstruir esta ideia.

O silêncio de quem fez a Guerra

Durante a apresentação de Nó Cego, os três oradores fizeram referência ao facto de muitos daqueles que fizeram a guerra serem incapazes de falar da sua experiência.

“São situações traumáticas em que as pessoas são confrontadas com situações limites e em que, inclusive, são confrontadas com lados da sua própria personalidade que ignoravam, para o melhor e para o pior. É uma experiência na qual se convive com a morte e da qual é difícil falar na primeira pessoa”, assinalou António-Pedro Vasconcelos.

Foto de José Morais.

E é exatamente por esta perceção do “silêncio de quem fez a Guerra”, da falta de transmissões de vivências e memórias, que Carlos Vale Ferraz frisou que é necessário “escrever, filmar, dizer o que se passou”.

“Temos de mostrar. E mostrar não é julgar nem condenar. É mostrar. Não há julgamentos da história, não se julga o passado. Agora temos é de tentar perceber e tentar que o passado nos ajude a viver o presente. E nos ajude a não cometer os erros no futuro”, vincou.

O escritor lembrou ainda que, com o sacrifício de todos estes homens que viveram a guerra, “encontrámos bases para uma nova situação, para uma solução”.

O tabu sobre a Guerra Colonial

Carlos Vale Ferraz afirmou que “os escritores portugueses desde o século XIX até depois do 25 de Abril não escrevem sobre África”.

“A primeira, ou única vez, que África é referida é pelo Eça de Queiroz em Uma Campanha Alegre, que diz mais ou menos o seguinte: 'se não sabem o que fazer com as colónias, vendam-nas. Ou melhor ainda, dêem-nas'. Os neorrealistas não escrevem sobre África, os grandes nomes da literatura não escrevem sobre África. Existem apenas dois ou três escritores que, durante o período da Guerra, escrevem sobre a matéria com várias artimanhas para passar na censura”, avançou Vale Ferraz.

No pós 25 de Abril, por outro lado, foram vários os constrangimentos sentidos por quem ousou falar sobre o tema. Essa foi a experiência de Carlos Vale Ferraz no que respeita ao Nó Cego e de António-Pedro de Vasconcelos, quando tentou passar o romance para o ecrã de televisão, como foi também a experiência de João de Melo aquando da publicação de Os Anos da Guerra - Os Portugueses em África, altura em que chegou a ser sujeito a ameaças.

Para Vale Ferraz, estes episódios são “muito significativo daquilo que é a mentalidade dos portugueses, daquilo que são os poderes fáticos no país, da forma como os poderes veem ainda hoje a questão colonial e a questão da guerra”.

“Os portugueses têm uma má relação com a memória”

Segundo António-Pedro Vasconcelos, “os portugueses têm uma má relação com a memória, ainda que isso esteja relativamente a mudar”.

António-Pedro Vasconcelos. Foto de José Morais.

“Quando pensamos na nossa história, e na nossa literatura, não há, verdadeiramente, um romance sobre a Guerra Civil, não há um romance sobre as invasões napoleónicas, sobre o cerco de Lisboa”, exemplificou, sublinhando que “não temos na nossa literatura uma tradição de falar daquilo que foram os episódios importantes da história de Portugal”.

Para o cineasta, muitas vezes é “mais cómodo” não evocar o passado, isso “desresponsabiliza-nos de conviver com a realidade. Porque a realidade às vezes é dura, é contraditória”.

A “falta de ficção sobre aqueles que foram os momentos importantes da nossa vida”, principalmente no que toca ao cinema e à televisão, foi uma das razões pelas quais António-Pedro Vasconcelos quis fazer um filme sobre a guerra.

“Levar a guerra colonial às escolas enquanto ainda é tempo”

Os três oradores confluíram na ideia de que é necessário levar a Guerra Colonial às escolas, transmitir estas experiências e estas memórias às gerações mais novas.

“Há um léxico que foi adotado entre nós pelo qual ainda aferimos a nossa posição em relação à guerra. Há pessoas que se recusam a dizer guerra colonial, dizem guerra do ultramar. Não dizem colónias, dizem províncias ultramarinas. Não dizem guerrilheiros, dizem terroristas. Este léxico é vastíssimo. No regime que sustentou esta guerra evidentemente que esta guerra não era guerra, eram 'missões de soberania'. E a guerra era movida por elementos exteriores que nem sequer eram nacionalistas, eram uns bandidos que do exterior nos guerreavam porque queriam o que eram nosso”, apontou João de Melo, sublinhando que “é por estas e por outras, e por muitas mais, que esta é uma guerra que, entre nós, nunca existiu”.

A primeira edição de Nó Cego data de 1982. Foto de José Morais.

“Falta mais literatura, faltam filmes, séries sobre a Guerra Colonial. E falta levar a Guerra Colonial às escolas, levá-la às novas gerações enquanto ainda é tempo, enquanto ainda existem pessoas que estiveram na Guerra, bem como os seus pais e filhos”, reforçou António-Pedro Vasconcelos.

A par de Nó Cego, que, ainda que referenciado como um clássico da literatura, não integra o Plano Nacional de Leitura, muitos mais títulos de Carlos Vale Ferraz ocupam destaque na literatura sobre África, como A Mulher do Legionário, Os Lobos Não Usam Coleira, ASP, De Passo Trocado, O Livro das Maravilhas, Flamingos Dourados, Fala-me de África, que deu origem à série televisiva Regresso de Sizalinda, e Soldadó. No que respeita ao cinema, o autor redigiu o argumento do filme Portugal SA, de Ruy Guerra, e colaborou com Maria de Medeiros no argumento do filme Capitães de Abril.

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