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Chávez: nem herói, nem tirano

Foi um político do século XXI que chegou ao poder pelos votos e o manteve durante 14 anos graças ao apoio popular. E foi também o primeiro grande líder da etapa pós-neoliberal da América Latina, começando a explorar um caminho pelo qual depois avançariam outros países. Por José Natanson, Brecha
Chávez no Brasil: Como os outros presidentes da viragem à esquerda latino-americana, Chávez soube combinar governabilidade económica com estabilidade política e inclusão social, tripé em que se apoia a legitimidade desta nova camada de líderes. Foto Roberto Stuckert Filho/PR.

Um homem é sempre muitas coisas. No caso de Hugo Chávez, basebolista aficionado, leitor voraz ainda que de gostos dispersos, militar habituado a ver o mundo em termos de tática e estratégia, cristão cada vez mais convencido, showman, self-made man, cantor e pintor aficionado...

Poderia ter sido, também, um herói. Na tarde de 11 de abril de 2002, as forças armadas cercavam o Palácio de Miraflores, depois de uma manifestação antichavista liderada por funcionários da PVDSA se ter desviado para a sede presidencial e ter entrado em confronto com um grupo de partidários do presidente, com choques entre polícias e militares e franco-atiradores que deixaram duas dúzias de mortos de ambos os lados. Com um sector dos militares a cercá-lo, as comunicações com os mais leais cortadas e um panorama internacional confuso – os Estados Unidos e a Espanha apoiavam o golpe, a Argentina de Duhalde opunha-se, o Brasil aguardava –, Chávez decidiu não combater. Ainda não sabia que os seus funcionários lhe jurariam lealdade, ainda os canais privados de televisão não estavam a transmitir desenhos animados para ocultar os milhares e milhares de chavistas que desciam as ladeiras de Caracas para o apoiar, e ainda, decisivamente, não era consciente de que uma parte importante das forças armadas, sobretudo da Marinha e do Exército, se recusavam a tocar essa música.

Neste contexto confuso, Chávez ordenou à sua guarda pessoal que não enfrentasse os militares insurretos e entregou-se sem disparar um único tiro. Ao fazê-lo, Chávez atuava racionalmente, medindo relações de força, calculando probabilidades e recorrendo à enorme astúcia de não deixar nada por escrito: rendeu-se, é certo, mas negou-se a assinar a renúncia formal que os golpistas nunca puderam exibir em público, num desses gestos aparentemente menores mas que revelam a intuitiva sagacidade do verdadeiro político. Porque renunciando sem combater, Chávez fazia algo mais que evitar o destino trágico de Allende, que deu um tiro na cabeça com a metralhadora oferecida pelos cubanos quando as tropas de Pinochet entraram no Palácio de La Moneda. Naquele momento, numa decisão que se revelaria acertada, Chávez renunciou a algo: ao destino de herói para ser, desde aí e até o final de seus dias, um político.

(O interessante é que o conselheiro definitivo dessa decisão, como o próprio Chávez contaria depois, era, ele sim, um herói: Fidel Castro, ao telefone de Havana, sugeria-lhe que não se imolasse, que se entregasse enquanto podia porque, intuía bem, ainda tinha possibilidades de um regresso ao poder. Numa dessas reviravoltas interessantes que às vezes nos traz a história, o herói aconselhava a Chávez que atuasse como um político.)

Dentre todos os ângulos possíveis para analisar Chávez, escolho então este: Chávez poderá ter sido um bom ou um mau presidente, mas não foi um herói nem um tirano. Por isso, ainda que a tão na moda comparação com Fidel pareça tentadora, também pode ser enganosa: diferente do cubano, um expoente da Guerra Fria que liderou a epopeia de uma revolução triunfante a 90 milhas da Flórida, Chávez foi um político do século XXI que chegou ao poder pelos votos e o manteve durante 14 anos graças ao apoio popular evidenciado numa sequência de treze eleições impecavelmente vencidas.

E foi também o primeiro grande líder da etapa pós-neoliberal da América Latina. Assumiu a Presidência em 1999, em plena hegemonia do Consenso de Washington, e começou a explorar um caminho pelo qual depois avançariam outros países. Não por uma especial clarividência, ou pelo menos não só por isso, mas sim porque a crise económica, a crise social e o desmoronamento do sistema de partidos (as marcas da transição pós-neoliberal) que na Argentina se produziram em 2001, na Bolívia em 2003/2004 e no Equador em 2004/2005, na Venezuela aconteceram em 1989, quando o “Caracazo” mudou para sempre a paisagem de um país que, na frouxidão de uma social-democracia condescendente, achara estar a salvo de traumas sociais e de golpes de Estado.

Desde a sua chegada ao poder e a espantosa encenação do seu primeiro juramento ("juro por esta moribunda Constituição", disse, para deixar bem clara a sua intenção de a reformar), Chávez manobrou habilmente – sempre medindo, calculando, avaliando – até atingir, nos seus últimos anos, um ambicioso projeto de reforma política, social e em menor medida também económica.

Detenhamos-nos um momento no balanço. Do ponto de vista social, o saldo é positivo: praticamente todos os indicadores melhoraram, sejam medidos como forem, nos 14 anos de chavismo. Do ponto de vista económico, em contrapartida, o balanço é mais matizado: Chávez não conseguiu romper a monodependência de um país que continua a exportar basicamente um único produto – o petróleo – a basicamente um único destino – os Estados Unidos –, ainda que seja lícito perguntar-se se alguém poderia tê-lo feito com um barril que se obstina a custar acima dos 100 dólares. Seja como for, a Venezuela tem registado um crescimento desigual, acumula preocupantes tensões macroeconómicas (alta inflação, défice fiscal, um mercado cambial caótico) e continua assente numa estrutura produtiva mais parecida à da Nigéria ou da Arábia Saudita que à da Argentina ou do Brasil. Do ponto de vista político, o saldo do chavismo é um formato institucional difícil de definir mas muito inovador, uma espécie de hiperdemocracia plebiscitária na qual a evidente legitimidade do líder convive com não menos evidentes esforços por debilitar o componente republicano – e em menor medida o liberal – próprio de qualquer sistema democrático. Em concreto: a Venezuela é o único país latino-americano – à exceção de Cuba – que não contempla limites ao exercício permanente do poder pela mesma pessoa, e ao mesmo tempo realiza periodicamente eleições limpas nas quais, quando o líder perde, como aconteceu no referendo do 2007, reconhece a sua derrota.

E por último, do ponto de vista das relações internacionais, Chávez foi o principal impulsionador de uma integração latino-americana concebida como uma articulação solidária entre iguais, que não caiu no típico esquema centro-periferia que caracterizou as relações com a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e inclusive, por momentos, com o Brasil, mas que ao mesmo tempo encontrou enormes dificuldades para cristalizar acordos concretos e duradouros. Uma integração presidencial que ainda não se coagulou em processos institucionalizados à altura das suas intenções (não temos nem Banco do Sul, nem moeda única, nem alfândegas harmonizadas, nem um Parlamento), mas que de todas as formas supõe um desafio aos Estados Unidos. Mas um desafio contido, administrado. Acontece que, apesar da sua prédica anti-imperialista, Chávez evitou mexer com os dois temas mais sensíveis na estratégia externa de Washington (cooperou sempre em matéria de luta contra o narcotráfico e não manteve com as FARC mais contactos que os necessários para resguardar as suas fronteiras, como por outro lado também fez o Brasil), no contexto de uma relação comercial estável e mutuamente benéfica (a única vez que Chávez deixou de enviar petróleo ao império foi – paradoxos da história – quando a oposição conservadora paralisou a PDVSA).

Torna-se difícil, no meio da avalanche de análises e depois de 14 anos no poder, ensaiar um balanço do chavismo. O central, creio, é evitar que os necessárias olhares panorâmicos ocultem os matizes e as contrações de um regime que poderão ser traçados em linhas gerais, que não chegam para o descrever. E que além disso – ainda que mal se distinga – é um regime que foi mudando no tempo, desde o fascínio inicial com a terceira via para o socialismo do século XXI, por motivos totalmente compreensíveis: diferente de Evo Morales e de Lula, e igual a Rafael Correia, Chávez chegou ao poder sem um partido, um movimento social ou uma confederação sindical que o apoiasse, e quis empreender mudanças profundas baseando-se sobretudo na sua vontade e no seu carisma. E deparou-se então com o paradoxo – mais um – de tentar implantar o socialismo, mesmo o do século XXI, numa sociedade amansada numa cultura económica rentista, com uma estética que não é a única, evidentemente – porque a Venezuela também é berço de escritores e pintores geniais –, mas sim a dominante, do novo rico ao estilo Catherine Fulop1; uma revolução no país que consome mais whisky escocês per capita do mundo (ainda que não produza nem uma gota e fabrique um rum excelente), onde se vendem mais jipes Hummer (a 80 mil dólares cada um) que nos Estados Unidos e cuja capital se foi convertendo na cidade mais insegura da América do Sul (mais que o Rio de Janeiro!), apesar de os índices de desigualdade terem melhorado (numa dessas contradições que põem em crise as verdades dos sociólogos, Caracas é uma cidade mais igualitária mas mais perigosa).

Voltemos ao início. Como os outros presidentes da viragem à esquerda latino-americana, Chávez soube combinar governabilidade económica com estabilidade política e inclusão social, tripé em que se apoia a legitimidade desta nova camada de líderes. Foi, de todos eles, o que levou mais longe a sua vocação transformadora, ainda que as reformas nem sempre tenham funcionado e ainda que muitas delas tenham pés de barro. Mantendo-se dentro das amplas fronteiras da democracia e do capitalismo, Chávez teve a vocação dos grandes políticos que querem esticar a corda ao máximo, e no caminho chocou-se, uma e outra vez, com a realidade de um país que o amou tanto quanto o odiou. Sem cair em dissertações de hegelianismo para aficionados a respeito do Homem e da História, se o sujeito ou a estrutura, digamos por último que Chávez foi a expressão mais potente de um processo que o transcende, histórica e geograficamente. Os seus limites foram os da Venezuela e os das revoluções impostas a partir de cima.

Montevideo, 8-3-2013

Título original: Venezuela: Balanço matizado

José Natanson é diretor de Le Monde Diplomatique, Edição Cone Sul (da América Latina).

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

1 atriz, cantora e modelo venezuelana que mora e atua na Argentina.

(...)

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