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Brasil: 2016 marcou o fim da hegemonia do PT

O ano marcado pelo afastamento de Dilma Rousseff e pelo fim dos governos hegemonizados pelo PT termina com mais incógnitas que certezas. Por Luis Leiria, no Rio de Janeiro.
Manifestações em São Paulo contra Michel Temer. Foto de Sebastiao Moreira/EPA/Lusa
Manifestações em São Paulo contra Michel Temer. Foto de Sebastiao Moreira/EPA/Lusa

O ano de 2016 ficará na história do Brasil como o do afastamento (impeachment) da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, aprovado no Senado em 31 de agosto por 61 votos contra 20. Apesar de ter sido aprovado na câmara alta do Congresso Nacional, o impedimento significou um golpe parlamentar desferido ao arrepio da Constituição, porque o motivo que os senadores usaram para derrubar a presidente, as chamadas “pedaladas fiscais”, não pode ser considerado um “crime de responsabilidade”, que teria de justificar tão drástica decisão.

Sem base de apoio

A manobra, porém, só saiu vitoriosa porque o governo de Dilma Rousseff já estava à deriva, abandonado pelos seus aliados de direita – entre eles, o PMDB do vice-presidente Michel Temer – e sem contar também com a base de apoio entre a classe trabalhadora e o povo mais pobre do país. No momento de maior impopularidade, as pesquisas mostravam que 60% da população queria que Dilma renunciasse e 68% apoiavam o impeachment.

O governo que afirmara ter descoberto a fórmula do “ciclo virtuoso de crescimento com inclusão social”, em que a classe dominante e a classe trabalhadora ganhavam igualmente, passou, no segundo mandato de Dilma, a adotar o “reajuste fiscal”, o nome que a clássica política da austeridade ganhou no Brasil, nomeando o representante dos bancos, Joaquim Levy, para conduzir a nova política económica. Detalhe: na campanha eleitoral, Dilma afirmara-se contrária a essa mesma política, que constava no programa do seu adversário derrotado, Aécio Neves, porque significa um ataque aos trabalhadores e ao povo em benefício dos banqueiros.

O Partido dos Trabalhadores também perdera a batalha das ruas, onde sempre reinara inconteste. Empunhando a bandeira contra a corrupção, a direita levou às ruas as maiores manifestações da história do Brasil, exigindo a renúncia da presidente.

É certo que Dilma Rousseff nunca foi acusada de qualquer envolvimento com a corrupção; mas também é verdade que o núcleo duro do Partido dos Trabalhadores foi devastado pelas investigações judiciais do “mensalão” e do “petrolão”, com a condenação de nomes tão importantes como José Dirceu, Delúbio Soares ou José Genoíno, ou a prisão preventiva de António Palloci, o ministro da Fazenda favorito de Lula da Silva, entre tantos outros.

Direita ficou com a bandeira anticorrupção

O PT nunca soube, nem tentou, arrancar a bandeira anticorrupção das mãos da direita, escudando-se na denúncia do enviesamento ideológico dos juízes da operação Lava Jato, que deram prioridade à investigação do PT e deixaram de lado a que envolvia o PSDB. Fraca defesa, ao estilo “Só nós? Cadê os outros?”, que demonstrou a incapacidade de contestar as arrasadoras provas de pagamentos de luvas a políticos e membros da administração petista. Fraca defesa, que atacou em bloco o famoso pacote de dez medidas anticorrupção dos juízes da Lava Jato, no qual, a par de medidas antidemocráticas, figuravam propostas importantes de legislação, como a da penalização do enriquecimento ilícito, bandeira tradicional da esquerda.

A política do PT, de governar à direita sob a falsa ilusão de que poderia contentar todos, chegou a um beco sem saída quando a conjuntura económica internacional deixou de ser favorável. O partido tentou manter-se à tona fazendo mais concessões à direita. Mas, observando que o governo perdera grande parte da sua base social, a classe dominante decidiu prescindir dos seus serviços o mais rapidamente possível, porque deixara de precisar deles.

Deposta Dilma Rousseff, assumiu o seu vice-presidente, Michel Temer, de um PMDB que rompera com o governo de coligação e assumira a liderança da oposição. Temer, junto com Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, e Renan Calheiros, presidente do Senado, todos eles do PMDB, foram decisivos para que corresse célere o processo do impeachment. Cunha, sobre o qual pesavam provas esmagadoras de corrupção, apenas perdeu o mandato e foi preso depois de ter cumprido a sua função no processo do golpe parlamentar.

Com a posse de Temer, duas coisas ficaram claras com rapidez: de um lado, a fragilidade do novo governo formado pelo vice-presidente, vulnerável às investigações de corrupção. De setembro a dezembro perdeu seis ministros, cinco dos quais devido a denúncias de envolvimento com corrupção ou tráfico de influências. A sua popularidade caiu a níveis inferiores aos de Dilma no seu pior momento. A maioria dos brasileiros, revelam as sondagens, quer a saída de Temer e a realização de eleições diretas. Mas, ao contrário deste sentimento popular, a Constituição prevê que depois de dois anos de mandato, caso haja a renúncia do presidente, este seja substituído através de um processo indireto, numa eleição feita no Congresso Nacional.

Aproveitar a impopularidade”

Por outro lado, ficou claro que Temer quer “aproveitar a sua impopularidade” para fazer as chamadas “reformas que o país precisa”, nas palavras de um publicitário que apoia o governo.

E assim se vê revelado o verdadeiro caráter do golpe parlamentar: constituir um governo não-eleito por ninguém, que fique com o ónus de destruir o sistema social criado pela Constituição de 1988, cortando os orçamentos sociais como nunca governo algum fez (a emenda constitucional já aprovada, apelidada de “Fim do Mundo”), reduzindo a pó a proteção social na aposentação através da chamada Reforma Previdenciária, e destruir mecanismos importantes de proteção do trabalhador que constam na legislação laboral desde os tempos de Getúlio Vargas.

A direita une-se no esforço de aprovar de afogadilho esta contrarrevolução legislativa e dará apoio ao governo Temer custe o que custar, até serem aprovados estes diplomas. Depois, cumprido o seu papel, o governo deste bizarro político – que dedica um tempo desmesurado a definir estratégias para fugir de qualquer aparição pública que possa evidenciar o repúdio popular que desperta –, poderá ser descartado da mesma forma que foi o antes todo-poderoso Eduardo Cunha.

Eleições municipais foram vitória da direita

As eleições municipais, realizadas no rescaldo da aprovação do impeachment, confirmaram o afundamento do Partido dos Trabalhadores, o maior derrotado, que perdeu 383 das 638 prefeituras (câmaras municipais) que controlava, e manteve apenas o governo de Rio Branco, capital do Acre, entre as capitais de estados. Pela primeira vez, o partido perdeu todas as prefeituras da cintura industrial de S. Paulo, o famosos ABCD paulista. O PC do B, seu parceiro de coligação fez melhor: subiu de 54 para 83 prefeituras, que incluem Aracaju, capital do estado de Sergipe.

As eleições confirmaram a vitória do PSDB, que conquistou mais 108 prefeituras, passando a ser hegemónico em 803, entre as quais São Paulo, a maior do país, conquistada logo à primeira volta. Nas 93 grandes cidades do país, com mais de 200 mil eleitores, o partido saltou de 15 prefeitos eleitos em 2012 para 28 em 2016. Governa, através das prefeituras, 48,71 milhões de pessoas. O outro vencedor foi o PMDB, que se manteve como o partido com mais prefeituras do país, 1037 (mais 16 que nas eleições anteriores), mas 14 de grandes cidades (a metade das do PSDB).

À esquerda do PT, o PSOL manteve duas prefeituras, mas disputou o 2º turno em duas capitais importantes: Belém e Rio de Janeiro, a segunda mais importante do país, onde Marcelo Freixo foi derrotado pelo pastor da Igreja Universal, Marcelo Crivella.

Incertezas para 2017

Apesar das importantes vitórias da direita que ocorreram em 2016, o ano termina com muitas incertezas em relação ao futuro.

– Conseguirá a direita manter a sua unidade em torno do governo Temer e aprovar impunemente a contrarrevolução legislativa que está em curso? Qual vai ser a reação da classe trabalhadora, que até agora manteve uma posição expectante, em relação a ataques tão pesados, que representam um retrocesso de décadas? Conseguirá superar o imobilismo das suas centrais sindicais maioritárias, principalmente a CUT, hegemonizada pelo PT?

– Até que ponto foi a derrota do lulo-petismo? Por enquanto, o afundamento eleitoral do PT não se refletiu na sua figura principal, o ex-presidente Lula que, segundo as últimas sondagens, venceria a eleição no primeiro turno, seja quem for o candidato do PSDB, e só perderia no 2º turno para Marina Silva, da REDE. Mas conseguirá Lula, que já está acusado em cinco processos, ser candidato? Em caso contrário, não se enxerga outro candidato que minimamente possa repetir ou se aproximar da sua performance eleitoral.

– O que leva a outra incógnita: a delação da Odebrecht. Desde há um mês, os procuradores da Lava Jato estão colhendo os depoimentos dos executivos da gigantesca empresa de construção que tinha um departamento exclusivamente dedicado a influenciar governantes e deputados de acordo com os interesses da empresa, em troca do pagamento de “luvas” milionárias. A delação inclui o depoimento do presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, preso já há um ano e meio. O potencial explosivo desta delação é enorme, e deve envolver tanto Temer quanto Lula e os governadores do PSDB.

– Até onde vai a Lava Jato? Parece claro que se trata de um projeto que vai além do Judiciário e que poderá envolver um lado político, seja pró-PSDB (causou um enorme mal-estar uma fotografia do juíz Moro conversando e rindo com Aécio Neves, ex-candidato presidencial do PSDB), seja autónomo (o Juíz Moro teria enormes possibilidades de vencer qualquer eleição que disputasse). Porém, o enviesamento antiPT demonstrado foi um pouco amenizado com a iniciativa de ordenar a prisão do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, do PMDB, uma máquina de arrecadar “luvas”. E as divergências entre os juízes da Lava Jato e a maioria do parlamento, particularmente a bancada do PMDB, mas também do PSDB e do PT, podem provocar situações inusitadas. A Câmara dos Deputados tentou cortar as pernas aos juízes, desfigurando as medidas do seu pacote anticorrupção e abrindo a possibilidade de processá-los por abuso de autoridade. O presidente do Senado, Renan Calheiros, tentou aprovar de afogadilho essas medidas no Senado, mas teve de recuar devido às denúncias dos juízes – que ameaçaram com a renúncia coletiva – e ao mau impacto na opinião pública. Não está claro qual será o resultado final desta disputa.

– Até onde vai a extrema-direita? Pela primeira vez em tantos anos, surgem setores fascistas em torno do deputado Jair Bolsonaro, que apareceu nas sondagens com resultados de 9% se candidato à Presidência.

– Finalmente, o mais importante: saberá a esquerda socialista unir-se em torno da construção de uma alternativa de esquerda ao PT, que combata a contrarrevolução legislativa mas também levante a bandeira anticorrupção? A alternativa de uma esquerda oposta à desastrada experiência do PT, uma esquerda que mantém a sua bandeira impoluta e apresenta um programa para a um Brasil mais justo, um Brasil dos trabalhadores?

O ano 2017 promete.

(...)

Neste dossier:

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