Opus Bach

Mitten wir im Leben sind/Bach6CelloSuiten, imagem de Anne Can Aerschot, 2018, via rosas.be

Mitten wir im Leben sind/Bach6CelloSuiten, imagem de Anne Van Aerschot, 2018, via rosas.be

Die Stille vor Bach [O Silêncio ante Bach], de Pere Portabella, será a pesquisa e a resposta cinematográfica mais completa e atualizada sobre o problema que é cultural: o lugar totémico onde colocámos Bach e a distância entre o profano e o sagrado, esmagados obsessivamente ante a autoridade em Nome do Pai e a Arte como veículo de um prazer perdido.

Keersmaeker e Queyras, tal como Portabella, reconfiguraram a questão de dentro para fora, contrariando esta desvinculação da representação com a abertura para os espaços discretos da performance, denunciando a preocupação com a arte de Ouvir (já abundantemente investigada por Keersmaeker, particularmente em The Song).

Todos os movimentos surgem da relação com o músico que, por sinal, mantém o olhar ligado ao corpo em dança. Há uma razão artística, cénica e simbólica para esta deslocação do olhar (habitualmente entregue à reificação do intérprete sobre si próprio): a necessidade de música e movimento se coordenarem; a indicação ao público da união entre ambos; e a projeção da música enquanto movimento. São os corpos e as suas fragilidades, incluindo músico e violoncelo em palco, deslocados do centro, que garantem a abertura da música ao espectador transformado ouvinte.

Elementos constituintes deste trabalho: silêncio, gravidade, estrutura, espaço e tempo.

As marcações colocadas no palco durante a récita não são (apenas) ajudas de campo mas sim uma Estrutura a quatro dimensões: a vertigem do espaço sobre si próprio onde cada pentagrama, raio, diâmetro e circunferência constroem uma torre a três dimensões: o espaço. Por seu lado, o movimento define os limites da vertigem: o tempo. Acresce uma particularidade feliz proporcionada pelo próprio auditório onde o fundo de palco, sendo vidro acústico transparente, criou um reflexo espectral do palco ao mesmo tempo que permitiu jogar com a luz do jardim e lago exteriores, lançando a própria estrutura deste trabalho para horizontes cósmicos.

Mitten wir im Leben sind/Bach6CelloSuiten, imagem de Anne Can Aerschot via rosas.be

Mitten wir im Leben sind/Bach6CelloSuiten, imagem de Anne Van Aerschot, 2018, via rosas.be

A Gravidade neste trabalho é uma ferramenta que traduz a música em movimento, o impulso que lança os corpos no chão e dá a ver os pontos de suspensão e distensão da partitura. As frases de Bach são sempre estruturadas por um gancho suspensivo no ponto mais alto da frase, elemento a partir do qual se desenlaça a música. Simples. E simples foi o andar/correr de Keersmaeker e Rosas em palco, acompanhando as suspensões de Bach, tal como simples foi a relação céu/chão e os movimentos circulares em torno de eixos desvanecentes.

Mitten wir im Leben sind/Bach6CelloSuiten, imagem de Anne Van Aerschot, 2018, via rosas.be

Por fim, o Silêncio é utilizado como um elemento cénico com duas funções específicas: expurgar o trabalho da palavra e da letra, obrigando o espectador a entrar numa meta-linguagem; e, mais importante, explorar o eco reflexivo da própria obra. A música e a dança não param quando a deixamos de ouvir ou ver. Quando Queyras se ausenta mas o movimento permanece em palco, e vice-versa, é um sinal indicativo que nos orienta enquanto espectadores para o próprio fazer artístico, dominado antes e depois pelos ecos da performance, tal como o ouvinte séculos após Bach.  

Este trabalho opera um realinhamento do sensível, um trabalho cultural longo e detalhado que reinscreve Bach no ato performativo em contraste com a tentativa de várias instituições em transferir a relação artística para plataformas digitais por força da pandemia, não indo além de meros oásis de melancolia. O direito ao numinoso encontra-se aqui.

Mitten wir im Leben sind/Bach6CelloSuiten, imagem de Anne Can Aerschot, 2018, via rosas.be