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O cadastro do novo PM iraquiano.
"Quem poderia prever que o mandato de Allawi [como primeiro-ministro em 2004] ainda haveria de ser recordado positivamente por alguém?". O espanto de Ryan Crocker, embaixador dos EUA no Iraque entre 2007 e 2009, diz muito sobre o novo chefe do governo iraquiano. Por Jorge Costa.
De facto, só um regime apodrecido por sete anos de ocupação e numa sociedade desesperada, poderia voltar à ribalta este agente norte-americano.
Em 2010, o primeiro-ministro Allawi é o mínimo denominador comum de uma heterogénea coligação de partidos. Em 2004, foi o rosto iraquiano do massacre de Falluja, reintroduziu a pena de morte e expulsou do país a cadeia de televisão Al-Jazeera. Mas para conhecer Iyad Allawi, vale a pena recuar um pouco mais.
Durante anos, até à decisão de ocupar militarmente o Iraque, o Departamento de Estado e a CIA cultivaram a estratégia do golpe palaciano que derrubaria Saddam. Nessa linha, alimentaram sistematicamente todo o tipo de baasistas caídos em desgraça, desertores dos serviços secretos e das forças armadas. Durante anos, Iyad Allawi liderou o principal desses grupos, o Acordo Nacional Iraquiano (ANI), que ainda hoje é o seu partido. O próprio Allawi vem da hierarquia do Partido Baas. Foi responsável das relações europeias do partido entre 1971 e 1975, que acumulava com as actividades londrinas da polícia secreta iraquiana, a Mukabarat. Segundo a New Yorker, Allawi ocupava-se da perseguição e eliminação de dissidentes iraquianos no exílio. Os outros dirigentes do ANI apresentam currículos igualmente prestigiantes: Sali Omar al-Tikriti foi dirigente do Conselho Revolucionário de Saddam, supervisor de enforcamentos públicos em Bagdade no anos 70 e depois embaixador na ONU. Nuri Al-Badran, cunhado de Allawi, foi embaixador em Moscovo. Já nos anos 90, o ANI relatava a Washington as suas actividades no interior do Iraque: atentados contra civis, que responsáveis da CIA lembram ao New York Times - bombas num cinema e contra um autocarro de passageiros em Bagdade.
Ainda segundo o New York Times, Allawi estava na folha de pagamentos da CIA desde 1992. Washington contava com o ANI como centro de uma rede iraquiana que assegurasse a continuidade de um regime autoritário sem Saddam, mas os serviços secretos iraquianos abortaram sempre as suas débeis tentativas. Em 1996, as suas movimentações foram infiltradas pela Mukabarat, resultando numa vaga execuções e no fracasso total. O ANI passou a dedicar-se então ao tráfico de histórias. Segundo a Newsweek, a fábula das armas de destruição massiva capazes de atingir Londres em 45 minutos teve a sua origem no partido de Allawi. A mudança de ramo foi um sucesso: o rol de mentiras foi comprado pelos Estados Unidos e Allawi, com os seus amigos, sempre se sentaram nos palácios de Bagdade.
Em Junho de 2004, pouco antes de o então embaixador norte-americano no Iraque John Negroponte o instalar pela primeira vez à cabeça do governo, Allawi foi notícia nos dois jornais de referência da Austrália (The Age e Sidney Morning Herald). Numa visita a uma esquadra de polícia em Bagdade, Allawi teria executado a sangue-frio seis membros da resistência iraquiana . Para dar o exemplo. As testemunhas foram demasiadas para o crime não se saber. O episódio podia ter-lhe custado a carreira, não fossem tão fortes os seus protectores. Pouco depois, Allawi desembarcava em Londres. Era convidado de honra de Tony Blair no congresso do Partido Trabalhista.
O currículo desta personagem põe a ridículo os elogios à "democracia iraquiana" nascida da devastação do Iraque. Esta guerra foi o primeiro grande crime do imperialismo no século XXI. Disso sim, surgem sempre novas provas. Do mais ínfimo dos seus episódios ao mais patético dos seus protagonistas.
Jorge Costa é dirigente do Bloco e autor, com Francisco Louçã, de "A Globalização Armada" (ed. Afrontamento)