100 dias de Trump e o imperialismo espectáculo

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No início de Novembro de 2016, Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, com uma derrota no voto popular de quase 3 milhões de votos (Hillary Clinton obteve a nível nacional 65,8 milhões de votos, enquanto Trump obteve apenas 62,9 milhões), que não foi suficiente para impedir a sua vitória no Colégio Eleitoral, o verdadeiro fazedor de reis nos EUA, onde a vitória em estados-chave como Michigan, Florida, Pensilvânia e Wisconsin foi decisiva e a regra do winner-takes-all em cada Estado garantiu a sua vitória. Trump não era garantidamente o candidato do regime. A candidata democrata Hillary Clinton foi sempre a favorita da imprensa e do establishment: ex-primeira dama, ex-secretária da Estado, ex-Senadora, sempre foi uma importante figura na defesa da liberalização comercial extrema, da globalização selvagem e da intervenção externa violenta (Balcãs, Iraque, Afeganistão, Líbia, etc.). Clinton era a adversária ideal para Trump desempenhar o papel de outsider, anti-globalização, anti-político e quase anti-sistema.

A interferência no processo eleitoral quer por parte de agentes da justiça americana (o director do FBI James Comey anunciou uma investigação aos emails de Hillary Clinton na semana anterior à eleição), quer por parte de operativos russos continua a ser central na definição inicial daquilo que é a política de Donald Trump. O apoio aberto de Donald Trump a Vladimir Putin, reiterado durante a campanha e após a eleição, assim como a reciprocidade declarada pelo presidente russo, tornaram-se uma questão chave na definição política do que seria uma presidência Trump interna e externamente, assim como da nova geografia imperial do mundo.

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A proposta política da campanha Trump fez-se com elementos clássicos da degeneração capitalista na direcção de um autoritarismo pré-fascista: o proteccionismo económico avesso à ideia de cosmopolitismo (materializado na política racista, xenófoba e anti-migratória) mantendo a livre circulação de capitais enquanto crítica à globalização “destruidora de empregos”, apoiando a subjugação de classe e o racismo institucional, desmantelando direitos sociais e roçando em vários momentos a ideia de um regresso ao relativo isolacionismo militar americano pré I Guerra Mundial. Um isolamento comercial, uma harmonização de relações com a Rússia de Putin e um afastamento da China e da União Europeia davam vários novos sinais. Hoje, Marine Le Pen em França segue a mesma linha de crítica à globalização defendendo a nação literalmente fechada, a nação branca e caucasiana como horizonte da recuperação económica do capitalismo, com apoio, tal como ocorreu com Trump, de alguns sectores da burguesia industrial e agrícola.

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Durante a campanha, Trump anunciou várias vezes o seu plano para os primeiros 100 dias:

• Acabar com o Obamacare: a primeira política de Saúde pública tendente à universalidade a existir nos Estados Unidos;
• Realizar uma reforma fiscal
• Começar a construir um muro para separar os Estados Unidos do México
• Começar um grande projecto de obras públicas e recuperação de infraestruturas
• Introduzir tarifas comerciais
• Declarar a China um manipulador cambial e impor restrições ao comércio entre os dois países
• Acabar com os padrões comuns de Educação no país

De todas estas reformas, Trump apenas conseguiu, no 99º dia da sua presidência, apresentar o seu plano (sem ter conseguido naturalmente aprová-lo) para uma reforma fiscal reduzindo os escalões, aumentando as deduções que os mais ricos podem fazer, abolindo o imposto sobre heranças e sobre investimento, e reduzindo o imposto sobre as grandes empresas de 35% para 15%. O impacto da aplicação desta proposta seria um aumento do défice entre 3 e 7 biliões de dólares na próxima década.

Apesar de não ter cumprido nenhuma das 7 promessas declaradas para os seus primeiros 100 dias, há muito que Donald Trump fez, através de um uso sem precedentes de ordens presidenciais executivas (ordens dadas directamente pelo presidente aos funcionários federais e agências do governo federal que têm força de lei). Num total de 33 ordens executivas, e afastando-se declaradamente de um Congresso dominado pelo Partido Republicano, Trump bateu nos seus primeiros 100 dias um número recorde de ordens que se mantinha desde Roosevelt durante a 2ª Guerra Mundial:

• Cortou fundos para contraceptivos de 27 milhões de pessoas, principalmente mulheres;
• Reduziu os critérios obrigatórios de segurança para companhias aéreas;
• Introduziu uma proibição por 90 dias da entrada de cidadãos muçulmanos nos Estados Unidos (sendo que a proibição por motivos de ordem religiosa era inconstitucional, Trump decidiu proibir a entrada de pessoas do Irão, Iraque, Síria, Líbia, Somália, Sudão e Iémen);
• Ordenou um ataque militar ao Iémen no décimo dia do seu mandato que provocou 29 mortos civis;
• Ordenou raides da imigração americana (ICE) que levaram à detenção de mais de 21 mil imigrantes (mas os números de deportados são inferiores aos números de Obama);
• Autorizou a construção do Dakota Access Pipeline, um oleoduto de 1900 km que atravessa territórios demarcados indígenas e reactivou a construção do oleoduto Keystone XL, que ligará o Canadá ao Golfo do México, cortando os Estados Unidos a meio (ambos projectos tinham originado um forte movimento social de oposição);
• Retirou os Estados Unidos da Parceria Transpacífica (TPP), e congelou as negociações com a União Europeia para o Tratado Transatlântico (TTIP);
• Ordenou a revisão do Acto Dodd-Frank, cujo objectivo era aumentar os controlos sobre Wall Street, sobre a actividade financeira e sobre os produtos derivativos;
• Em Fevereiro, acusou o Irão de ter atacado um navio de guerra americano, mas rapidamente foi revelado que o ataque tinha sido feito por rebeldes iemenitas e que o navio de guerra era saudita;
• No final de março, retirou regulações sobre limites de emissões de gases com efeito de estufa em instalações industriais e revogou a legislação sobre protecção e qualidade da água;
• Retirou as restrições que existiam para pessoas com problemas mentais poderem adquirir armas de fogo;
• Abriu os terrenos federais à exploração de carvão e retirou os limites de fugas de metano em poços de gás e petróleo;
• Passou a permitir que as empresas servidoras de internet pudessem passar a vender os históricos de buscas online dos seus clientes;
• Foi autorizado que os caçadores pudessem passar a caçar a partir de aviões e helicópteros, assim como que pudessem passar a matar lobos em tocas ou ursos em hibernação.

Um importante sinal mais geral dado para os próximos anos no entanto é a proposta de orçamento federal para 2018. Trump propôs cortes em basicamente todos os gastos do Governo Federal:

• Um corte de 31% na Agência de Protecção Ambiental (uma redução de 2,6 mil milhões USD);
• Um corte de 29% nos programas de apoio aos Estados (menos 10,9 mil milhões USD);
• Um corte de 21% no Departamento de Agricultura (menos 4,7 mil milhões USD);
• Um corte de 21% no Departamento do Trabalho (menos 2,5 mil milhões USD);
• Um corte de 20% no Departamento de Justiça (menos 4 mil milhões USD);
• Um corte de 16% no Departamento da Saúde (menos 12,6 mil milhões USD);
• Um corte de 14% no Departamento de Educação (menos 9,2 mil milhões USD);
• Um corte de 12% no Departamento de Habitação (menos 4,3 mil milhões USD).

Em contrapartida, Trump propôs um aumento de 6% no orçamento para o apoio aos veteranos (equivalentes a mais 4,4 mil milhões de dólares), 7% na Segurança Interna (equivalente a mais 2,8 mil milhões de dólares) e, obviamente no Departamento de Defesa, que com um aumento de 10%, equivalente a mais 52,3 mil milhões de dólares, isto é, aumentado o orçamento em 2018 os militares para 574 mil milhões de dólares. Do primeiro orçamento Trump, os militares receberão mais 125 milhões de dólares do que todo o resto do governo em conjunto. O mandato Obama caracterizou-se por um importante aumento do orçamento militar até 2011 (ultrapassando nessa altura o valor proposto por Trump em quase 200 mil milhões de dólares) seguido de um declínio até 2017.

No início de Abril, após um ataque químico em Khan Sheikoun atribuído a Bashar al-Assad, Donald Trump ordenou um bombardeamento com 59 mísseis Tomahawk, da base aérea de Shayrat, perto de Homs, controlada pelo governo sírio. 15 militares terão morrido no ataque, que foi ordenado por Donald Trump sem qualquer comunicação com as Nações Unidas ou participação da NATO. Poucos dias depois o governo americano anunciava o lançamento da “Mãe de Todas as Bombas”, a mais poderosa arma não-nuclear do exército americano, utilizada no Afeganistão supostamente para atacar uma rede de túneis e esconderijos subterrâneos do Estado Islâmico, com relatos da morte de 90 combatentes. Desde a tomada de posse de Trump, a Coreia de Norte realizou uma série de testes de mísseis, com o governo dos EUA a enviar várias figuras do Estado à Coreia do Sul, no que levaria a uma escalada de palavras e à intervenção chinesa, primeiro impondo um embargo à importação de carvão da Coreia do Norte e mais parte tentando intermediar directamente entre Trump e Kim Jon-Un, que se ameaçavam reciprocamente com a obliteração nuclear. Além do secretário da Defesa James Mattis, Trump enviou à região Rex Tillerson, o secretário de Estado e o próprio vice-Presidente Mike Pence.


Mike Pence em visita às tropas do Comando do Pacífico na base de Pearl Harbor-Hickam. Foto Myles Cullen/Casa Branca.

 

No período eleitoral, os “mercados” reagiram à nomeação de Trump como candidato republicano e à sua ascensão nas sondagens com quedas, mas assim que o resultado eleitoral se consolidou, os mercados dispararam, com o Nasdaq a atingir a maior subida desde 2011. Nos primeiros 100 dias de Trump, o Dow Jones Industrial subiu 6,12%, o index Standard & Poor 500 subiu 5,32% e o Nasdaq 16,45%. Segundo o Marketwatch, Trump é o 5º presidente com a maior subida de cotações nas empresas do Standard and Poor 500, atrás somente de Franklin Roosevelt, John F. Kennedy, George Bush pai e Barack Obama.

A evolução do dólar no entanto foi mais errática, com quedas durante os primeiros dias, regresso à valorização quando Trump começou a desmantelar a regulação financeira, nova queda quando não conseguiu aprovar o Trumpcare para substituir o Obamacare na Saúde (impedindo que mais de 20 milhões de estadunidenses pobres ficassem sem qualquer cobertura médica) e nova subida quando o Reino Unido activou o artigo 50 do Tratado da União Europeia para efectivar o Brexit. Hoje, o dólar está abaixo do dia de tomada de posse de Trump, mas acima de quando venceu a eleição.

Aos 100 dias de mandato, Donald Trump tem a mais baixa taxa de aprovação de qualquer presidente dos EUA (há registos desde Eisenhower nos anos 50), de apenas 40%, com 54% dos americanos a desaprovarem a acção de Trump. 40% concordam com a sua política externa, 44% aprovam as suas medidas económicas e só 25% consideram-no credível. Em contraponto, 62% apoiam a iniciativa de Trump de bombardear a Síria  em resposta ao ataque químico (88% dos republicanos, 43% dos democratas e 58% dos independentes declararam apoiar o ataque).

 

Desde o primeiro dia da sua presidência que Donald Trump é ensombrado pela presença da Rússia. As suas nomeações políticas, próximas do poder oleogárquico russo, desde Rex Tillerson, saído de CEO da Exxon-Mobil para a secretaria de Estado, até Michael Flynn, seu conselheiro de Segurança Nacional, passando por vários membros da sua equipa eleitoral como Paul Manafort e Carter Page, foram paulatinamente expostas e as ligações tornaram-se numa questão política com o potencial de tornar-se um novo Watergate. O próprio Trump, que em vários momentos negou ter ligações com Putin e interesses russos, foi rapidamente desmentido.

TRUMP E LAVROV
Trump reuniu na Sala Oval com o chefe da diplomacia russa, Sergey Lavrov.

Um processo de investigação à intervenção do governo russo e de hackers russos no processo eleitoral americano foi desencadeado, com James Comey, presidente do FBI, a assumir que vários membros do staff eleitoral de Donald Trump estão a ser investigados por conluio com agentes do governo russo para adulterar as eleições dos EUA. Michael Flynn, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, demitiu-se a meio de Fevereiro depois de ser revelado que tinha estado em negociações com o embaixador russo nos EUA, Sergey Kislyak, para levantar as sanções americanas contra a Rússia, antes de Trump ter tomado posse. Kislyak ter-se-á reunido com vários membros da campanha de Trump antes das eleições e antes da tomada de posse, nomeadamente J.D.Gordon, Carter Page, Jeff Sessions (o Procurador-Geral da República nomeado por Trump) e Jared Kushner, o genro. Entretanto, tanto no Senado como no Congresso iniciaram-se investigações à relação de Donald Trump e da sua equipa eleitoral com o governo russo. No Congresso, a comissão de investigação era liderada pelo congressista Devin Nunes, grande apoiante de Trump, que no início de Abril se demitiu após ser revelado que passara informação confidencial ao presidente e não aos restantes membros da comissão. Poucos dias antes, o Procurador-Geral Jeff Sessions tinha anunciado que não participaria na investigação do FBI à intervenção russa nas eleições, depois de serem revelados dois encontros secretos entre Sessions e o embaixador russo (algo que o mesmo havia negado na sua audiência de confirmação no Senado, semanas antes). Michael Flynn anunciou entretanto que só testemunharia no Congresso e no Senado ser recebesse imunidade judicial.

Dois dias depois, Trump lançava 59 Tomahawks sobre uma base aérea do governo de al-Assad, desviando durante as semanas seguintes todas as conversas para longe da Rússia e para perto do relógio do fim do mundo, agudizando o seu discurso sobre a Coreia do Norte e lançando a “mãe de todas as bombas” no Afeganistão. A conveniência do outsider do ataque com gás sarin em Khan Sheikoun, repetindo outro ataque também imputado pelos EUA a Bashar al-Assad em 2013 em Ghouta na Síria (as Nações Unidas não chegaram a uma conclusão sobre a autoria) é surpreendente. A ligação entre a Síria e a Rússia tornou esta acção ainda mais útil para Trump, criando uma clivagem (real ou fabricada) com aquele que era até então o seu maior aliado internacional, Vladimir Putin, e exactamente aquele com quem era acusado de ter conspirado para perverter as eleições. Como foi possível ver, quer pelas sondagens, quer pela imprensa dos EUA, atacar a Síria foi a iniciativa mais popular de Donald Trump desde a tomada de posse.

 

Apesar da inequívoca dimensão tragicómica do início da presidência de Donald Trump, da política espectáculo do twitter e das intervenções irascíveis do multimilionário, o seu desalinhamento é muito oscilante. As derrotas judiciais, com a proibição da entrada de muçulmanos quebrada duas vezes em tribunal, foram-se somando às derrotas políticas como a incapacidade de derrubar o sistema de Saúde criado por Obama e de avançar com a construção do seu muro com o México (e mais ainda de fazer o México pagar), e às derrotas públicas, nomeadamente a percepção da ignorância sobre temas-chave, os interesses financeiros da família Trump, o nepotismo e a desconfiança acerca da inequívoca relação russa. O neofascista Steve Bannon, que mobilizou a extrema-direita atrás de Trump sob a bandeira da Alt-Right e através da agência de comunicação Breitbart News, perdeu o seu lugar de conselheiro principal de Trump para Jared Kushner, o seu genro. O sistema exige um realinhamento. A inaptidão do outsider é demasiado patente e só na véspera dos 100 dias Trump conseguiu evitar o encerramento do governo, com um Congresso dominado pelos republicanos mas que não consegue aprovar um orçamento de 1 bilião de dólares para manter o governo a funcionar até Setembro. Trump não consegue convencer o Congresso a dar dinheiro para pagar o muro.

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A imprensa, tão atacada por Trump, atropela-se para perdoá-lo, e cada vez que Trump fala e não parece um psicopata, desde a CNN à MSNBC multiplicam-se os louvores sobre a sua presidencialidade. A ascensão de Ivanka Trump, sua filha, e de Jared Kushner, o seu genro, dentro da Casa Branca, longe de levantar acusações de nepotismo e conflitos de interesses, levanta entre a imprensa mainstream a esperança de que os mesmos venham a ser a voz da moderação e que a sua promoção seja um sinal da capacidade de liderança do multimilionário.

Trump gere as relações externas do país à velocidade do twitter, a sua primeira arma. Depois da intensificação das ofensas, dissipa a tensão com a Coreia do Norte (Trump assume agora que seria uma “honra” encontrar-se com Kim Jong-Un), a intervenção militar na Síria não tem sequência (desde o bombardeamento no início de Abril não houve mais intervenções nem declarações sobre o país). Quando se reduz a tensão interna, ressurge o Trump outsider. Com os tratados comerciais TPP e TTIP rasgados, a política de Trump fortalece a Rússia e eventualmente a China (o Tratado Transpacífico estabelecia um cordão sanitário comercial à volta da China) e também aposta num declínio do capitalismo europeu, com o apoio de Trump e Putin a Le Pen nas eleições francesas a darem o sinal do interesse russo e americano num colapso caótico da União Europeia (a aproximação de Viktor Órban a Putin é novidade relevante neste capítulo). O volte-face com a NATO, que passou de “obsoleta” a “imprescindível” pode não passar de tweet oral. Perante a dificuldade política de se aproximar visivelmente da Rússia, a aproximação de Trump à China é notória, com a visita de Xi Jinping aos EUA e a desistência da imposição de tarifas, a mediação com a Coreia do Norte e com o contacto com o presidente das Filipinas, o assassino Duterte, que vai receber na Casa Branca. Mas esta política internacional demasiado errática tem de ser compensada, já que partes importantes do capitalismo americano olham com extrema desconfiança para o isolacionismo (real ou percepcionado), para o colapso do “ocidente”, para um novo arranjo multi-imperial autoritário ou para qualquer abandono do domínio absoluto das armas pelo “polícia do mundo”.

À política fiscal pro-finança, à política ambiental pró-hidrocarbonetos e de agravamento das alterações climáticas junta-se uma política social de perseguição racial, desmantelamento e empobrecimento generalizado, agora não sob a égide da competitividade, mas sob o mito da excepcionalidade americana branca e olhando para uma nova configuração global capitalista. A burguesia financeira e industrial americana é assim seduzida para o trumpismo económico interno. Mas pode esta burguesia aceitar a cedência ao multi-imperialismo? Ou mesmo aí o que interessa é a vertente de espectáculo imperialista? Para manter a sua personagem, possivelmente Trump voltará à intervenção imperialista localizada, à guerra de subversão e manipulação política e à implantação de regimes fantoche, já que as intervenções militares em grande escala se revelaram em tantos aspectos catastróficas até para os EUA.

O capitalismo global adaptar-se-á à ideia de apoiar proteccionismo económico de bens e pessoas, desde que esteja garantida a livre circulação de capitais? Tudo indica que, perante a crise financeira, sim. Os estados imperialistas precisam garantir as condições favoráveis para a acumulação de capital, mas a financeirização das economias em determinados momentos permite desligar o capital global do estado imperialista. Trump lidera o braço armado do imperialismo global. Permitirá a afirmação da China no Leste Asiático e da Rússia na Europa de Leste e no Médio Oriente? Estará disponível para ficar apenas com o papel de tropa de choque de uma coligação de três (ou mais) imperialismos?

Trump descobriu cedo no seu mandato que para contrapor aos seus gigantescos problemas em casa tem uma reserva estratégica de legitimidade através da intervenção externa militar que reafirma os Estados Unidos na dominação imperial do mundo. Apesar da ascensão de vários poderes imperialistas, o fim do domínio imperialista americano, real ou percepcionado, não chegou ainda. Enquanto projecto político, Trump precisa do imperialismo não só enquanto dominação, mas principalmente enquanto espectáculo, para se manter à tona de água.

Em desenvolvimentos de última hora, Trump conseguiu aprovar na Casa dos Representantes o desmantelamento do Obamacare e, na sequência, despediu o director do FBI, James Comey. Esta última acção, despedindo o principal responsável pela investigação sobre as ligações Trump-Rússia depois de Comey ter confirmado em audiência no Congresso que estão em formação dois “Grandes Júris” para avançar para processos judiciais, fez disparar todos os alarmes “Watergate”. Esta acção é um paralelo amplificado do episódio em que Richard Nixon despediu Archibald Cox, à altura o principal responsável pela investigação da espionagem da campanha republicana à campanha democrata nas presidenciais, e que levaria finalmente à demissão do presidente republicano. No dia seguinte ao despedimento, o presidente reuniu-se com o embaixador Kysliak e com o ministro dos Negócios Sergei Lavrov. A imprensa americana foi proibida de entrar, mas a russa teve acesso à Sala Oval. Provavelmente Trump já estará a equacionar uma nova acção de agressão externa, mas o cerco aperta.

Neste cenário, regional e mundial, o que pode a esquerda anti-capitalista fazer? Não há hoje nenhum bloco regional ou potência emergente que não seja imperialista. A urgência de um movimento anti-guerra e anti-imperialista, não geograficamente definido mas implantando internacionalmente, recusando quer nacionalismos quer alinhamentos com os diferentes imperialismos, que não caia nos mesmos erros do movimento internacionalista pré-1ª Guerra Mundial, é evidente.

 

As fotografias deste artigo são de Shealah Craighead, fotógrafo oficial da Casa Branca, e pertencem ao domínio público.

Artigo publicado na revista Anticapitalista