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Primeiro-ministro não tem condições para continuar no cargo

Talvez o primeiro-ministro entenda que gastos com prestações sociais, investimento na educação e gastos de saúde são má despesa pública. Talvez pense que devíamos gastar tudo em rotundas, submarinos e estoirar fundos comunitários na formação de centenas de trabalhadores de aeródromos que não operam.

Ontem à noite, numa entrevista televisiva, o país assistiu à prestação política de um Primeiro-ministro sitiado, totalmente desligado de qualquer dos problemas e dramas que fazem hoje o quotidiano de milhares e milhares de portugueses, um homem que pensa que a história do país nos últimos dois anos - falências e desemprego em massa - pode ser resumida às conversas abstratas sobre “ajustamento” que foi tendo em salas de reunião.

Um primeiro-ministro que se apresenta perante o país prometendo apenas e só que o pior ainda está para vir.

E sem assumir qualquer responsabilidade. Depois de todo o debate político tido desde meados de 2011, depois de todas as vozes, à esquerda e à direita, que alertaram para o desastre social, o buraco recessivo na economia e portanto para o incumprimento dos próprios objetivos do governo na redução do défice orçamental - o primeiro-ministro surge agora “surpreendido” com a queda da receita fiscal no ano de 2012.

É extraordinário - surpreendido, Sr. Primeiro-ministro? Afinal não foi toda a estratégia política e orçamental do governo que ruiu e mostrou a sua incompetência. Não, o Governo estava certo, acha o PM. Os portugueses, esses malandros, é que ficaram desempregados e consumiram de menos. Não fosse essa má vontade dos cidadãos, e tudo teria corrido bem.

O grau de cegueira do governo atingiu níveis nunca vistos. Perante o colapso comprovado da sua estratégia - perante um tecido económico à beira do colapso, a brutal retração de rendimentos das famílias, os milhares de falências, o desemprego record - o PM no sossego da sua residência oficial responde singelo: austeridade.

Nem se dá conta, ou finge não dar, que depois de todo este programa de choque e pavor sobre a economia, os rendimentos e direitos sociais dos cidadãos, o défice real - em nome do qual supostamente tudo isto estava a ser aplicado - vai ficar nos mesmos 7% do ano passado.

9.000 milhões de euros de austeridade em 2012, foi este o vosso programa, para menos de 1.000 milhões de consolidação, foi este resultado de um programa de empobrecimento deliberado do país.

E agora, diz-nos o primeiro-ministro, que repetir para 2013, 2014 e sabe-se lá mais quando, a dose que falhou estrondosamente em 2012. Mais austeridade, mais empobrecimento, a manutenção do saque fiscal a quem vive do seu trabalho, corte nas pensões, redução dos níveis salariais.

No domingo, dois dias antes do governo ter aberto os cordões das nossas bolsas para enterrar mais 1.100 milhões no despesismo jardinista, Passos Coelho foi ao congresso do PSD Madeira dizer que os portugueses ainda aguentam mais austeridade. Vê-lo defender a austeridade para todos os que trabalham e pagam impostos enquanto passava um cheque, mais um, para Alberto João Jardim é das imagens que simboliza bem esta governação falhada. Sejamos moderados nas palavras, o cheque adicional de 1.100 milhões para Alberto João Jardim tem um nome: traficância política. Que o tenha feito, enquanto dizia que os portugueses aguentam mais austeridade, ai aguentam, aguentam, é só mais um insulto que junta ao rol.

Com aquele ar de quem nos está a anunciar em primeira mão a mais recente descoberta científica no domínio da física quântica, o primeiro-ministro disse que o governo é obrigado a cortar 4.000 milhões de euros na educação, saúde e reformas dos portugueses porque é aí que o Estado gasta o dinheiro.

Como a estrutura da despesa pública é similar em toda a Europa, das duas uma. Ou o primeiro-ministro era ignorante e não conhecia o Estado quando prometia fazer o ajustamento cortando nas famosas gorduras do Estado, ou sabia que não era assim e portanto mentiu, repito, mentiu deliberadamente na campanha eleitoral. Em ambos os casos, seja pela ignorância e incompetência ou má-fé, não tem condições para permanecer no cargo.

Ou talvez o primeiro-ministro entenda que gastos com prestações do sistema de segurança social - leia-se, pensões, subsídio de desemprego e apoios sociais ao mais pobres e mais idosos - investimento na educação das crianças e jovens; e gastos de saúde são má despesa pública.

Talvez pense que devíamos gastar tudo em rotundas, submarinos e estoirar fundos comunitários na formação de centenas de trabalhadores de aeródromos que não operam.

As promessas de ataque à segurança social, educação e saúde aí estão. Sem margem para dúvidas – todos os privilegiados do país, que segundo Passos Coelho são aqueles que têm salários ou pensões acima dos 600 euros verão cortados os apoios sociais, as suas pensões; as famílias com crianças e jovens pagarão propinas na escola para frequentar uma escolaridade a que o Estado obriga, e que a Constituição determina ser gratuita; os doentes verão aumentados os preços que já pagam no acesso à saúde.

Este discurso contra o Estado Social assenta na costumeira mistificação e demagogia da direita, que fala como se as prestações sociais e serviços públicos não tivessem já passado a última década num draconiano processo de ajustamento, mas que não resiste ao teste dos números.

Vejamos, então.

Em 2003, o valor médio do subsídio pago a cada desempregado era de 445 euros, este ano não vai ultrapassar os 237 euros. Uma queda, a preços constantes, de 47% no apoio a quem está numa situação de vulnerabilidade máxima.

Na saúde, e de acordo com o último relatório da OCDE, Portugal está no conjunto dos países que mais conteve a despesa na última década. 3 vezes mais do que a média europeia e, espantem-se senhoras deputados e deputados da maioria, 5 vezes mais do que a Alemanha.

Mesmo na educação pública, num país que só agora conseguiu a alfabetização plena que os países do norte da Europa atingiram na viragem para o século XX, com os cortes brutais operados por esta maioria já estamos a gastar menos do que a média europeia.

Curiosamente, no sector em que gastamos mais do que os nossos parceiros europeus, a defesa e segurança, o governo aumentaram a dotação orçamental para este ano. Aonde na Europa se destina 1,6% do produto para a segurança, a direita portuguesa não faz a coisa por menos de 2,4%. São 1.200 milhões de euros a mais.

Cortar o investimento na educação e formação para comprar submarinos, eis a refundação do Estado explicada às criancinhas.

Antes que se dediquem a fabricar comissões de discussão do assassinato do Estado social, que fique desde já claro - o Bloco de Esquerda nunca participará numa tentativa de fabricar uma legitimidade que os senhores não têm, para uma vingança ideológica contra o modelo social da democracia.

Declaração política na Assembleia da República a 29 de novembro de 2012

Sobre o/a autor(a)

Investigadora do CES
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