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Rousseau e o romantismo

Os revolucionários de 1789/1794 não se enganaram ao fazer de Jean-Jacques o seu herói, o seu inspirador e profeta. O “Discurso” de 1755 abre um novo capítulo na história da cultura humana: o do romantismo (revolucionário). Por Michael Lowy
O que é revolucionário no "Discurso" é, sobretudo, a crítica implacável da desigualdade social e do poder exorbitante da oligarquia dos ricos

O romantismo – não como “escola literária”, mas como visão do mundo – cristalizou-se, até à segunda metade do século XVIII, nos principais países europeus. Se fosse preciso escolher uma data “inaugural”, para esta corrente da cultura moderna, poderia ser 1755, data da publicação do “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens”. Foi um trovão no céu azul das Luzes, cujos ecos ainda se escutam, em 2012.

O que é o romantismo? A pergunta é tão controversa que o investigador americano A. Lovejoy propôs que os investigadores deixassem de utilizar esse termo: uma vã intenção para curar a febre romântica e quebrar o seu termómetro terminológico. Ainda que nos dicionários e enciclopédias se apresente o romantismo como um movimento literário e artístico do começo do século XIX, penso, pelo contrário, que se trata de um fenómeno muito mais extenso e profundo que atravessa todos os âmbitos da cultura: literatura, poesia, artes, filosofia, política, religião, direito, antropologia, historiografia. Estou convencido de que a história do romantismo não termina em 1830 ou 1848, mas continua na atualidade.

O romantismo deve ser concebido como uma visão do mundo – segundo o conceito de Weltanschauung – cuja quinta-essência é o protesto cultural contra a moderna civilização capitalista ocidental em nome de certos valores do passado. O romantismo protesta contra a mecanização, a racionalização abstrata, a reificação, a dissolução dos laços comunitários e a quantificação das relações sociais. Esta crítica faz-se em nome de valores sociais, morais ou culturais pré-modernos ou pré-capitalistas. Se o romantismo se afirma como uma forma de sensibilidade profundamente marcada pela nostalgia, não é porque negue pensar no que consiste a modernidade. De certo modo, pode ser considerado inclusivamente como uma forma de autocríticacultural da modernidade que continua, até aos nossos dias, a ser uma das principais estruturas de sensibilidade da cultura moderna.

Evidentemente, a nebulosa cultural romântica está longe de ser homogénea. Nela existe uma pluralidade de correntes: desde o romantismo conservador ou reacionário, que aspira à restauração dos privilégios e hierarquias do Antigo Regime, até ao romantismo revolucionário, que integra as conquistas de 1789 (liberdade, democracia, igualdade) e para quem o objetivo não é um regresso ao passado, mas um desvio pelo passado comunitário em direção a um futuro utópico.

Como veremos, Rousseau é um dos primeiros representantes desta sensibilidade romântica revolucionária, que também se encontra em Schiller, nos primeiros escritos republicanos dos românticos alemães (Schlegel), nos poemas de Hölderlin, Shelley e William Blake, nas obras da juventude de Coleridge, nas novelas de Victor Hugo, na historiografia de Michelet, no socialismo utópico de Fourier. Também se encontra nos escritos de marxistas ou socialistas libertários, tais como William Morris, Gustav Landauer, Ernst Bloch, Henri Lefebvre e Walter Benjamin. Enfim, poder-se-á encontrar a sua influência nalguns dos principais movimentos da revolta cultural do século XX, tal como o expressionismo, o surrealismo e o situacionismo.

O que é o “Discurso” de 1755 senão um grito angustiado de revolta e de protesto contra a civilização moderna? Efetivamente, numa passagem que tem a força profética de uma parábola do Antigo Testamento, Rousseau refere-se à origem do mal, num passado longínquo: “O primeiro homem que, ao aproximar-se de um terreno, lhe ocorreu dizer 'Isto é meu!' e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos; quantas misérias e horrores teria evitado ao género humano aquele que, arrancando as estacas da cerca ou cobrindo o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes: 'Cuidai de escutar este impostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e a terra de ninguém!” (pág. 47). A história do socialismo e do anarquismo contém numerosas proclamações contra a propriedade privada: nenhuma tem a força concentrada, o poderio épico, a qualidade de indignação, desta célebre abertura da segunda parte do “Discurso” de 1755.

 

Efetivamente, os males – a propriedade e a desigualdade – são velhos, mas nunca tinham alcançado tal dimensão antes da sociedade “civilizada” moderna. E se Rousseau fala de “origem”, é claramente da sua própria época – na qual o capitalismo faz da desigualdade entre ricos e pobres o eixo central da hierarquia social – que denuncia com uma raiva que não perdeu nada da sua atualidade dois séculos e meio mais tarde: “Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que puseram novos grilhões ao fraco e novas forças ao rico, aniquilaram para sempre a liberdade natural, fixaram para todo o tempo a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma astuta usurpação um direito irrevogável, e, para proveito de uns quantos ambiciosos, sujeitaram todo o género humano ao trabalho, à servidão e à miséria” (pág. 60). Em termos de modernidade torna-se mais explícita ainda a nota IX que ataca a nascente indústria mineira e química, os “ofícios doentios que abreviam a existência ou destroem o organismo, tais como os trabalhos nas minas, as diversas preparações de metais, de minerais, sobretudo, do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsénico, esses outros ofícios perigosos que custam a vida diária a muitos operários, outros mineiros, outros carpinteiros, outros pedreiros…” (pág. 90). Nesta produção, o que importa é o preço, a ganância, o lucro: “Do mesmo princípio pode-se deduzir a seguinte regra: que, em geral, as artes são lucrativas em razão inversa da sua utilidade e que as mais necessárias são, ao fim e ao cabo, as mais descuidadas. Por onde se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos” (pág. 91). A última frase do “Discurso” é também inequívoca: trata-se da desigualdade que reina – em 1755 – “em todos os povos civilizados”: “um punhado de gente transborda de coisas supérfluas, enquanto a multidão esfomeada carece do necessário” (pág. 75).

Totalmente a contracorrente do otimismo das filosofias do progresso próprias das Luzes, encontramos aqui uma primeira intuição da dialética do progresso, uma visão crítica, do ponto de vista das suas vítimas – operários, artesãos, camponeses – do desenvolvimento das “artes e indústrias” do capitalismo nascente. Evidentemente, a crítica de Rousseau não se restringe a este aspeto sócio-económico; o que se denuncia é todo o ethos da civilização moderna, o seu vazio moral e a sua desumanidade: “No meio de tanta filosofia, de tanta humanidade, de tanta civilização e máximas sublimes, só temos um exterior frívolo e enganoso, honra sem virtude, razão sem sabedoria e prazer sem felicidade” (pág. 75).

Eminentes especialistas em Rousseau recordaram que o autor do Discurso mudou de opinião, que noutros escritos defende a propriedade privada e apresenta propostas prudentes de reforma institucional. Pouco importa. O texto do “Discurso” de 1755 existe, está inscrito no mármore da cultura libertária e não deixou de exercer efeitos subversivos ao longo da história.

Este protesto, esta crítica, são românticas porque se referem a um passado pré-moderno – real ou imaginário, sem dúvida idealizado, pouco importa –, o do homem “natural” ou inclusivamente “bárbaro” que “não inclina a sua cabeça ao jugo que o homem civilizado suporta sem murmurar” (pág. 64); o homem selvagem “só desfruta do repouso e da liberdade” (pág. 74), o civilizado “sua, agita-se...trabalha até à morte” (pág. 74). Contrariamente aos românticos reacionários que, nas décadas seguintes, vão cultivar a nostalgia da Idade Média aristocrática, cristã e monárquica, Rousseau vai inspirar-se num universo primitivo livre e igualitário. Não é o que farão os socialistas e comunistas dos séculos seguintes, ao referirem-se ao “comunismo primitivo”?

Em que sentido é “revolucionária" esta crítica? Em primeiro lugar, ao contrário dos românticos retrógrados, Rousseau não é, em absoluto, um advogado do regresso ao passado. Contrariamente à anedota fácil de Voltaire, não propõe que a humanidade “volte a caminhar em quatro patas”. Não é questão, explica a nota IX, de “voltar a viver nas selvas com os ursos” (pág. 92). Sem dúvida, se rejeita um regresso impossível, o Discurso de 1755 não propõe uma alternativa. Apesar de tudo é interessante assinalar que, em certas paisagens, se refere à democracia como a forma de governo dos povos “que se tinham alheado menos do estado natural” (pág. 68) e na qual a desigualdade das fortunas era menor. Não é o caso da monarquia ou da aristocracia. “O tempo verificou qual destas formas era a mais vantajosa para os homens. Uns ficaram submetidos unicamente às leis; outros bem rápido obedeceram aos amos (…). Numa palavra: num lado estiveram as riquezas e as conquistas; no outro, a felicidade e a virtude” (pág. 68). Este claro apoio à democracia era bastante raro, em 1755, e é sem dúvida (implicitamente) revolucionário, no contexto absolutista da época.

Supostamente, o “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens” não explica a revolução; o que é revolucionário neste documento é, sobretudo, a crítica implacável da desigualdade social e do poder exorbitante da oligarquia dos ricos. Os revolucionários de 1789/1794 não se enganaram ao fazer de Jean-Jacques o seu herói, o seu inspirador e profeta.

O “Discurso” de 1755 abre um novo capítulo na história da cultura humana: o capítulo do romantismo (revolucionário). Se esta maravilhosa e refrescante corrente continua a fluir, é culpa de Rousseau.

* Publicado em: http://blogs.mediapart.fr/blog/michael-lowy/050512/rousseau-et-le-romant.... Tradução: António José André para o Esquerda.net.

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