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Praxe Académica: percursos, significados e formas de combate

Qualquer tipo de ativismo que queira contrariar a praxe e o que ela representa não se faz nunca com base na hostilização das pessoas que nela participam, mas sim na criação de espaços alternativos, que preenchendo a função da praxe, podem, com tempo, esvaziar a sua hegemonia.

1. Percursos

Nas universidades, nos jardins, nos transportes, nas praças, dezenas de pessoas vestidas de preto dão ordens a outras, que fielmente e de olhos no chão obedecem. Chama-se praxe académica. E ainda arrasta multidões.

A praxe académica é um ritual transversal em quase todas as instituições universitárias. Acontece essencialmente nas primeiras semanas do ano letivo e é a partir dela que se organizam quase todas as iniciativas de início do ano. Mas nem sempre foi assim.

Desde a institucionalização da praxe, na Universidade de Coimbra, muita alteração se fez ao seu objetivo e à sua prática. Desde a sua proibição por D. João V - "Hey por bem e mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos."-, a praxe sofreu, no século posterior, século XIX, uma alteração profunda caracterizada pelo aumento da violência. No século XIX, a praxe mais comum era o canelão – prática que consistia nos estudantes mais velhos darem pontapés nas canelas dos novos alunos – e também o rapanço – que consiste em rapar pelos aos estudantes. Em 1902, o canelão foi abolido mas só com a implantação da República é abolida a praxe. Durante o Estado Novo esta é recuperada, e novamente se dissipa a seguir ao 25 Abril, fruto de tempos em que outros motivos estimulavam a organização coletiva.

A praxe, como a conhecemos hoje, é fruto de uma densificação pós Abril, em particular fruto massificação praxista dos anos 70. A praxe foi (re)implantada nas décadas posteriores e foi acompanhada pela tomada das Associações Académicas pelas juventudes partidárias dos partidos do poder. Associações Académicas que continuam a ser importantes estruturas de base e apoio da cultura praxista. O próprio livro sobre a história da JSD mostra como a praxe foi estruturante para a hegemonia da direita nas Universidades. Com a massificação da praxe, os rituais institucionalizam-se, as hierarquias ganham força, os rituais multiplicam-se de ano para a ano, e cria-se, ainda que simbolicamente, a ideia de “tradição académica”. É essa a “tradição” com que quase todos os estudantes de primeiro ano se deparam.

2. Significados

O conceito de praxe é marcadamente polissémico, isto é, um conceito a que diferentes pessoas atribuem diversos significados. Mas ela é marcada também por um processo de institucionalização através de regulamentos que definem regras e incrustam códigos simbólicos e morais. Seja a maioria dos estudantes ou não, é verdade que a praxe arrasta multidões e não tenho dúvidas em afirmar que a maioria dessas multidões participa na praxe porque nela conhece pessoas, cria grupos, gera amizades, produz solidariedade coletiva. Mas esses pressupostos, que me parecem maioritários em quem no primeiro dia decide ir à praxe, não nos devem impedir de fazer a crítica política e cultural.

A praxe é uma estrutura profundamente hierárquica, apoiada num tipo de organização forte e com regras rígida. Por todos os casos que conhecemos podemos com firmeza dizer que a praxe é violenta física, simbólica e psicologicamente. Aproveita-se de fragilidades pessoais, de estigmas e de preconceitos hegemónicos. É profundamente machista, promove uma submissão da mulher e do seu corpo perante a virilidade da masculinidade. É homofóbica, exortando o uso de expressões como “gay”, “paneleiro”, “vão levar no cú”, “vão ser enrabados” como sinónimos de insulto a outros cursos ou escolas. É antidemocrática, baseada em ordens e imposições, sobre as quais os caloiros têm o dever de obedecer, olhando para o chão e não levantando objeções.

3. Formas de combate

Para muitos estudantes a praxe é a única forma que têm de, no início do ano, conhecerem pessoas e se sentirem familiarizados com o curso, a universidade e a cidade. A praxe cria amizades, integra, gera redes futuras de companheirismo e gera solidariedades grupais. Mas ela só parece ser praticamente inquestionável pela maioria dos estudantes porque não existem, de facto, iniciativas alternativas no início do ano, capazes de preencher essas funções. Por muito que se proclamem apelos a iniciativas alternativas à praxe, as experiências concretas que temos neste ano, estão reduzidas a experiências de uma ou duas Associações de Estudantes que criaram estes espaços.

Qualquer tipo de ativismo que queira contrariar a praxe e o que ela representa não se faz nunca com base na hostilização das pessoas que nela participam, mas sim na criação de espaços alternativos, que preenchendo a função da praxe, podem, com tempo, esvaziar a sua hegemonia. E isso depende do trabalho de base e da capacidade de construir ideias e iniciativas nas Universidades. Só gerando redes de socialização de outro tipo, a praxe pode perder o espaço que ocupa. Deve ser essa a direção do combate democrático à praxe.

Além disso, só levando a política para as universidades pode ser contrariado o caciquismo. Só disputando cultural e politicamente as universidades, as opressões e as estruturas representadas pela praxe podem ser questionadas e postas em cheque. É esse o desafio coletivo que nos interpela. É essa a responsabilidade sobre a qual não poderemos falhar.

Se a praxe se conseguiu implementar com tanta força não há nenhuma razão para que a democracia e a igualdade na integração não se possam implementar também. Afinal de contas, nenhum de nós tem menos capacidade que os praxistas.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e investigador
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