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A praxe, escola de submissão

Os casos de violência praxista mostram duramente qual a consequência de atribuir um poder tão importante como o de dar ordens a um grupo de pessoas obedientes e submissas.

Entrando hoje num estabelecimento de ensino superior português, encontramos frequentemente uma dicotomia difícil de entender. De um lado, o futuro, presente nas novas descobertas da investigação científica e nas novas teorias e técnicas ensinadas nas salas de aula. Do outro, o passado, presente num ritual iniciático medieval, um resquício do tempo em que a Universidade (em Coimbra) era um mundo à parte, com leis, polícia e prisão próprias.

Neste ritual a que se convencionou chamar praxe, os/as estudantes são divididos/as em dois grupos: os que mandam e os que obedecem. Quem entra no mundo universitário é suposto sujeitar-se às ordens de quem está lá há mais tempo durante o seu primeiro ano. Não é uma tarefa fácil, já que terá de abdicar da sua personalidade, tornando-se apenas num número, de aceitar o cognome “besta” e, acima de tudo, de abdicar dos seus direitos humanos mais básicos. Até à Queima das Fitas, o/a estudante do primeiro ano terá de passar por uma série de provas, que podem envolver gritar músicas machistas na rua, comer relva, simular actos sexuais ou rebolar-se em estrume, dependendo da faculdade.

O/a “caloiro/a”, diz o código que rege a praxe, é uma besta sem direitos. Se desrespeitar algum dos preceitos da praxe, sujeita-se a enfrentar um “tribunal”, onde será julgado/a numa sala escura, com caveiras e onde se terá de sentar num penico com água enquanto aguarda que os caciques da praxe anunciem o castigo corporal a que se terá de submeter. Se for apanhado/a na rua à noite, sujeita-se a ser sancionado por uma milícia popular chamada “trupe”, a menos que desafie o chefe do gangue para a pancada.

Quem consegue passar por este ritual, poderá integrar-se e assim fazer parte da elite dos/as “doutores/as”. Terá então oportunidade de poder exibir o traje académico como forma de distinção face ao “futrica”, ou seja, o iletrado, o ignorante, o membro do “povo”. Terá também oportunidade de se juntar aos restantes membros da elite e cercar os/as alunos/as do primeiro ano quando se vão inscrever ou quando saem das aulas, para assegurar que ninguém foge à praxe. De repente, tudo é festa e alegria para estes/as estudantes. Já ninguém se lembra – já ninguém se quer lembrar – dos primeiros dias de praxe, assim como das desculpas inventadas e dos estratagemas engendrados para fugir a ela.

Quem consegue a proeza de chumbar de ano, será “Veterano”, podendo participar no “Conselho de Veteranos” e organizar festas académicas, com todas as benesses que resultam de fazer parte de um órgão que, apesar de não ter existência legal, pode mobilizar largas somas de dinheiro. No topo da hierarquia, encontramos o “Dux”, um ancião que chumba deliberadamente ano após ano para não perder o poder que tem1.

Aqueles/as que passam por tudo isto e acabam por sair da Universidade para entrar na vida laboral passaram por uma prova de fogo. Entraram finalmente na vida adulta, não lhe sendo permitidos os excessos que aos/às estudantes são perdoados. Agora poderão por em prática os ensinamentos da praxe, vivendo a sua vida de acordo com as regras pré-estabelecidas e obedecendo sem questionar a quem está num patamar hierárquico superior. Afinal, a praxe é uma escola de vida.

Mas há também quem questione tudo isto. Há quem diga não às hierarquias entre estudantes, ao corporativismo infantil que semeia guerras entre faculdades e à cultura do medo. Há quem veja na Universidade um espaço de aprendizagem e de convívio, onde uma “tradição” medieval, reinventada ao longo dos tempos, enterrada pela rebelião estudantil dos anos 60 e 70 e desenterrada pelos saudosistas do fascismo nos anos 80. Há quem veja no traje académico, uma farda inventada pelo clero no século XVI, não uma forma de eliminar classes sociais mas como um instrumento de dominação pela uniformização. Há quem ouse construir uma Universidade liberta do jugo da máfia da praxe.

Toda a nossa solidariedade deverá ir para os/as estudantes que lutam contra a praxe. Os casos de violência praxista que ocasionalmente surgem na imprensa, e que representam apenas a ponta do icebergue, mostram duramente qual a consequência de atribuir um poder tão importante como o de dar ordens a um grupo de pessoas obedientes e submissas.

Em França, foi necessário saber-se pela imprensa de casos de violação colectiva ocorridos em praxes para que se formasse um Comité Nacional Contra a Praxe2, para que as Associações de Estudantes e os Conselhos Directivos assumissem as suas obrigações com a recepção de novos/as alunos/as e para que fosse criada uma lei que punisse actos humilhantes dentro das universidades. Por cá, já soubemos apenas nos últimos anos de uma aluna que foi coberta com esterco, de uma outra que foi violada por um praxista e de um aluno que foi morto pelos seus colegas de tuna. Que mais será necessário para despertar uma revolta geral contra a praxe?


1 Aqui uso apenas o género masculino porque não há mulheres no topo da hierarquia da praxe. O mundo da praxe é masculino e machão, como demonstraram bem os alunos do ISEG que exibiram uma faixa anti-travestis numa praxe [http://www.youtube.com/watch?v=offHWggUkLw&NR=1].

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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