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Transexualidade: a centralidade do trabalho

Os transexuais são o grupo social com a taxa de desemprego mais brutal: não deve andar longe dos 90%.

O Bloco apresentou, no dia 17 de Junho, um projecto de lei para reconhecer às pessoas transexuais um dos direitos mais básicos de todo o ser humano: o direito à sua identidade. Na semana passada, o Governo veio reconhecer que havia um problema e anunciou uma proposta sua que parece ir no sentido do projecto do Bloco. Ainda bem. Significa que já estamos a conseguir mudar. Pode ser que, assim, se dê um passo importante no combate à discriminação. Mas porquê agora?

Uma das armadilhas na discussão sobre os direitos civis é opor direitos das minorias e questões maioritárias e desligar o reconhecimento das diferenças da redistribuição da riqueza. Esta armadilha tem uma expressão conservadora e uma expressão liberal. A forma conservadora (estilo Cavaco) poderia ser resumida assim: “não podemos, em contexto de crise, perder tempo com esses problemas, esses assuntos não são prioritários e primeiro há que tratar da economia”. A forma liberal é a ideia de que o reconhecimento formal das diferenças é o suficiente para haver igualdade, independentemente das questões de como é que recursos e riquezas materiais são distribuídos.

A discussão sobre a transexualidade e sobre o reconhecimento da identidade de género põe em causa estes dois discursos. Os transexuais são o grupo social com a taxa de desemprego mais brutal: não deve andar longe dos 90%. Porquê? Uma das razões é porque, como se imagina, não é fácil ir a uma entrevista de emprego e ter de mostrar um documento com um nome e com um género diferente daqueles com que nos apresentamos. Quando discutimos uma lei que reconheça a identidade destas pessoas, estamos, em primeiro lugar, a discutir o direito ao emprego e à autonomia. A ideia de que há os direitos de todos e depois, à parte, há os direitos das minorias é a ideia mais discriminatória de todas, porque é uma forma de dizer que, do “todos” que somos, não fazem parte algumas pessoas. Pelo contrário, o que acontece é que as discriminações se somam. As “minorias” como os e as transexuais sofrem os problemas de todos e mais um. Sofrem do desemprego, dos cortes nos apoios sociais, da degradação dos serviços públicos, do aumento do custo de vida e, ainda, da discriminação social e da discriminação imposta por uma lei que, pura e simplesmente, não lhes reconhece a existência.

A população transexual é um dos grupos mais discriminados nas nossas sociedades. Há a discriminação social, que é profunda e precisa de ser trabalhada quotidianamente (nunca me esqueço de uma trans que me perguntava: “imaginas o que é ir no autocarro e as pessoas mudarem de lugar, como se fosses um monstro?”). E há a discriminação que resulta da lei, e essa tem de acabar já. Um dos factores mais importantes da marginalização social absoluta a que estão sujeitos estes cidadãos reside na discrepância entre a identidade oficial (o nome e o sexo que vem nos seus documentos) e a identidade em que as pessoas vivem (a forma como são reconhecidas pelos outros). Esta discrepância é uma razão determinante da negação do emprego, mas também do acesso à habitação ou da humilhação no acesso ao direito à saúde ou outros direitos fundamentais. É com essa discrepância que o projecto do Bloco pretende, com uma alteração simples ao Código do Registo Civil, acabar.

Actualmente, e perante a ausência de legislação sobre esta matéria, os e as transexuais são obrigados a interpor uma acção contra o Estado, de forma a verem alterados o registo de sexo e o nome constantes do seu assento de nascimento e outros documentos. Este tipo de processos pode prolongar-se por vários anos, sem que exista qualquer garantia relativamente ao desfecho dos mesmos. Um dos aspectos particularmente cruéis é a obrigatoriedade de a pessoa transexual ter de viver vários anos no sexo social desejado, não tendo no entanto, durante esse período, qualquer possibilidade de fazer corresponder ao género em que vive os documentos com que se apresenta.

Não dar resposta a este problema seria por isso, ignorar uma parte de nós, cidadãos deste país. Como não temos vocação para o silêncio, a nossa responsabilidade é responder a estas pessoas. No combate do dia-a-dia, contra a discriminação. E no fim de uma lei cruel, para que o reconhecimento da sua existência seja o primeiro passo de uma igualdade plena: no acesso ao emprego, à saúde, à educação e a todos os direitos que são de todos.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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