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Liberalismo ou o abismo

Défice, dívida pública, agências de rating, Credit Default Sawps (CDS), abismo e morte, são as palavras da "moda". O que é que têm em comum? O facto de servirem como instrumentos de desculpabilização dos governos e de chantagem por parte dos mercados financeiros para a implementação de políticas neoliberais.

Tanto o Défice como a Dívida Pública são conceitos contabilísticos, que permitem avaliar o endividamento dos Estados. A Dívida reflecte tudo o que devemos ao longo dos anos, ou seja, a totalidade dos "empréstimos" que o Estado teve que pedir para se financiar e que ainda é necessário pagar. O Défice, por sua vez, é o saldo entre as receitas e as despesas do Estado em cada ano. Quando o gasto é superior ao ganho, é necessário emitir mais títulos de dívida, que serão pagos mais tarde, com juros.

Ao contrário do que se possa pensar, o endividamento do Estado não é, por natureza, um factor de pânico. Em momentos de necessidade, os Estados podem e devem endividar-se, se esses fundos forem canalizados para criar emprego, investir na estrutura produtiva e promover políticas sociais.

Quando é que devemos então ficar preocupados? 1) Quando os défices aumentam para favorecer elites económicas e o desperdício, sem que isso sirva para beneficiar a economia e os trabalhadores; 2) quando as pressões para que o nível de endividamento diminua se tornam mais prejudiciais que o endividamento em si.

O que assistimos hoje é uma combinação de ambas. Um défice crescente, ao longo de anos, sem qualquer retorno visível para a economia e os cidadãos, e agora, depois da crise, uma política liberal de contenção. Cortar salários, promover privatizações e proteger interesses privados, medidas argumentadas com a urgência da consolidação orçamental exigida pelos mercados financeiros.

As agências de rating, de que tanto se fala, não são mais do que empresas privadas, pagas para analisar as entidades que avaliam, e isto coloca diversos problemas. Será correcto que seja o avaliado a pagar o avaliador? Será correcto utilizar os mesmos critérios para avaliar todos os tipos de entidades, independentemente das suas funções? Será correcto confiar cegamente em entidades que já provaram ser de grande falibilidade? A resposta é não.

Não existe qualquer razão lógica para que empresas de rating avaliem e condicionem políticas públicas, quanto mais não seja porque a eficiência/eficácia de um Estado não se mede pelo seu lucro ou rendibilidade, os critérios são outros.

O mesmo raciocínio é aplicável aos famosos CDS - produtos financeiros que servem de "seguro" sobre títulos. Quanto mais as agências de rating apregoarem as possibilidades de falência de um Estado, mais o preço destes produtos (alguns dos quais servem como seguro dos títulos da divida portuguesa) sobe, dando milhões a ganhar a quem os comercializa.

Mas serão os Estados reféns ou cúmplices destes rentáveis mecanismos que sustentam e formam os mercados financeiros? Se são os Estados que regulam os mercados e se, como foi dito depois da crise, existe interesse político em reduzir o seu poder, por que é que os governos se submetem ao implacável e insensível crivo da finança?

Porque sabem que é incrivelmente mais fácil cortar salários e prestações sociais, privatizar, desregular, e atirar as culpas para os CDS, a Fitch, a Moody's, a S&P, o FMI... Se os mercados financeiros não fossem úteis aos governos neoliberais, não existiriam. Se a existência destes governos não conviesse aos mercados financeiros e aos grandes grupos capitalistas, o resultado não seria muito diferente.

Se assim não fosse, não existiriam offshores, nem sigilo bancário, nem agências de rating privadas para condicionar o poder político. Se assim não fosse, o Estado Português não teria gasto 3,6 mil milhões (2.2% do PIB) a socorrer o sistema financeiro e apenas 2.1 mil milhões (1.2% do PIB) em estímulos à economia. Se assim não fosse, as mais-valias bolsistas seriam taxadas.

Estados liberais e mercados financeiros usam-se mutuamente, alimentam crises (em parte fictícias) e trocam álibis para a chantagem: o liberalismo e a resignação ou o abismo, a morte lenta. Resistamos ao discurso fatalista e "arrumemos a casa", como nos pedem, começando por varrer a resignação e a inevitabilidade do discurso neoliberal. As alternativas existem, dependem da vontade política.

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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