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Antes que isto azede!!!

Os médicos vão estar em greve nos dias 11 e 12 de Julho. Já sabemos o que se segue: uma campanha suja da parte do governo, na tentativa de denegrir os médicos enquanto classe profissional.

Os médicos vão estar em greve nos dias 11 e 12 de Julho. Em causa estão as recentes medidas emanadas do ministério da saúde que propõem fecho de serviços, concentração de urgências, diminuição das acessibilidades ao SNS e destruição das carreiras médicas, passando o SNS a contratar médicos a recibos verdes, através de empresas de trabalho temporário. Estas medidas corporizam, de forma clara e direta, sem rodeias e sem meias medidas, o fim do SNS a muito curto prazo.

Já sabemos o que se segue: uma campanha suja da parte do governo, na tentativa de denegrir os médicos enquanto classe profissional, de os acusar de corporativismo e de serem uns “privilegiados”. Aliás a campanha já começou, com os habituais comentadores de televisão e colunistas de semanários e, inclusive, com um vídeo no Youtube. Antes que isto azede e que entremos no jogo da opiniões e das acusações fáceis e desprovidas de qualquer valor factual, era importante dissiparmos algumas dúvidas e preconceitos que existem na sociedade em relação aos médicos. É isso que me proponho fazer a seguir.

1. Os médicos são uns privilegiados, então não ganham imenso dinheiro pelo SNS e depois ainda vão buscar mais fortuna aos privados?

Não. Um ordenado de um médico especialista em início de carreira no SNS, sem dedicação exclusiva (coisa que praticamente já não existe) é, em média de 1850 euros brutos, o que dá um salário real de cerca de 1300 euros. E ao longo da carreira não aumenta muito mais, um Assistente Hospitalar Graduado, que é uma categoria de topo, aufere 2240 euros brutos, o que dá uma salário real a rondar os 1600 euros. A grande maioria dos médicos exerce no SNS, sendo essa a sua atividade principal. Existem algumas especialidades, de carácter cirúrgico, onde a atividade extra no sector privado rende salários claramente acima destes valores – mas estes médicos são a exceção e não a maioria. Em paralelo, os consultórios privados estão a fechar massivamente com a abertura das grandes unidades privadas e estes hospitais privados requerem médicos a tempo inteiro (o que implica que estes deixem o SNS), onde os ordenados são muito semelhantes aos do SNS.

A tabela remuneratória dos médicos pode ser consultada aqui: http://www.smzs.pt/images/stories/2009/tabelamedica2009.pdf

2. Os médicos são licenciados como os outros, não deviam ganhar o mesmo que os outros?

Os médicos não são licenciados como os outros! O curso de medicina tem 6 anos – é o mais longo que existe e não certifica ninguém para exercer medicina autónoma. Após a licenciatura o médico tem, obrigatoriamente, de fazer formação pós-graduada que corresponde no mínimo a mais 5 anos e no máximo a 7 anos. Isto equivale a dizer que a formação médica de base é, no mínimo, de 11 anos, podendo chegar aos 13. Convém referir que durante todo este período os médicos em formação são avaliados pelos seus pares, em concursos nacionais, sendo submetidos, frequentemente a exames, avaliação de currículos e provas práticas. Mesmo depois da formação de base, existem várias avaliações ao longo da carreira, para se subir de categoria, que também incluem provas de exigência científica e curricular.

Mas para piorar a situação, convém ressalvar que os médicos de facto não ganham como os outros licenciados. Ganham menos! Comparados com outros graduados com nível de formação aparentada (mas sempre inferior, porque não há mais nenhuma carreira tão longa) como os juízes, os médicos ganham francamente menos!

3. Os interesses dos médicos são corporativos…

Qualquer classe profissional tem interesses corporativos e órgãos que os representam que são mais ou menos corporativistas. É assim em todo o lado. Mas não é isso que está em causa. Os médicos foram um dos pilares fundamentais do SNS nas últimas décadas. Se estivessem puramente interessados no dinheiro e nos seus próprios interesses, já há muito teriam abandonado o SNS e engrossado a iniciativa privada. Já há muito não haveria SNS. Os médicos têm-se mantido no SNS pela sua carreira, pela oportunidade que têm de tratar todo o tipo de doentes e não só os mais ricos, pela oportunidade de ensinarem os colegas mais novos, pela oportunidade de fazerem carreira científica e avançar o conhecimento médico, pela oportunidade de marcarem a diferença na inovação e no desenvolvimento da saúde no nosso país. Em súmula, o interesse dos médicos na sua carreira é o interesse no SNS, pois a melhoria das carreiras médicas tem uma consequência principal: a melhoria dos cuidados de saúde às populações. Destruir as carreiras médicas é destruir a qualidade desses cuidados, é destruir o SNS.

4. Os médicos tratam mal as pessoas e querem é despachar os doentes…

A isto vou deixar responder a Organização Mundial de Saúde, em 2010: In Portugal, there have been significant improvements in measures of population health status and in health care outcomes. For example, the rates of perinatal and infant mortality went from being the worst in Europe during the 1980s and 1990s to among the best in 2003. And life expectancy at birth has improved dramatically over the past 25 years, as mortality rates...” São estes os sucessos dos médicos em Portugal e, enquanto classe, provem-me do contrário se conseguirem mas esta é a classe profissional que mais qualidade e reconhecimento internacional deu ao país nas últimas décadas.

Dividir para reinar, foi assim com os professores, foi assim com os funcionários públicos, foi assim com os desempregados, começa agora a ser assim com os médicos. Voltar a sociedade contra esta classe profissional, agitando ódios infundados e senso-comum barato é o que virá a lume nos próximos tempos. A luta e a greve dos médicos é pelo SNS e é, portanto, por todos nós.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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