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Aborto: na guerra dos números contra o preconceito

Em 2011, o aumento do número de Interrupções Voluntárias da Gravidez foi menor do que nos anos anteriores. Eis um exemplo dos números que contam contra as agendas da discriminação e perseguição das mulheres.

Muitos números têm surgido na imprensa sobre o estado atual do recurso e acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Os jornais parecem competir entre si, tentando desconstruir os dados de modo a apresentá-los do modo que mais poderá chocar os seus leitores e a opinião pública. Para isso vão também acompanhando a campanha que timidamente se vai impondo contra este direito fundamental consagrado depois de tantas décadas de lutas e perseguição às mulheres. É o legado do refendo que está ameaçado. O ‘Sim’ que ganhou levou à aprovação de uma lei que afirma o direito à IVG até às 10 semanas e a garantia do seu acesso gratuito no Sistema Nacional de Saúde. No dia 11 de Fevereiro de 2007, à pergunta sobre se a sociedade reconhece nas mulheres a sua autonomia e capacidade para tomar decisões sobre si mesmas, a maioria respondeu ‘Sim’. Perderam os que as queriam (e as querem) criminalizar e discriminar.

Porém, o CDS, agora num governo de maioria de direita, prepara-se para propor uma taxa moderadora na realização de uma segunda IVG, insistindo na condenação do recurso a esta intervenção médica e aproveitando para despertar preconceitos através do aprofundamento da desinformação sobre esta realidade. A crise é hoje, na verdade, a desculpa aparentemente perfeita para retirar direitos. Nada de novo, não estranhamos (mas também não entranhamos). Para se poupar nos custos do trabalho, diminuem-se salários e apoios sociais; para se poupar na saúde, perseguem-se as mulheres.

Afirmar que a IVG é um luxo moralmente reprovável que o SNS não pode pagar é um discurso fácil que colhe apoio no desespero e na aflição que dificilmente têm meios para desconstruir o anúncio da inevitabilidade e as soluções dominantemente propaladas.

Contudo, há dados e conclusões que contam mais e que desmentem as notícias e declarações que vieram a público sobre o recurso à IVG em 2011. A UMAR divulgou uma “análise sem preconceitos” do relatório da Direção Geral de Saúde, publicado a 3 de Maio (ver aqui). As suas conclusões desmascaram as ideologias conservadoras e os princípios economicistas que pretendem voltar atrás, regressar ao tempo da liberdade negada – o tempo da prisão prometida para as mulheres que exercessem o direito à decisão sobre o seu corpo, muitas vezes correndo risco de vida. O CDS propõe agora o castigo da taxa moderadora. Muda-se a forma de repreensão mas o mesmo princípio persecutório mantém-se.

Uma leitura atenta dos dados apresentados pela DGS, e sem agendas obscurantistas à espreita, demonstra que a evolução em relação à IVG, em Portugal, tem sido positiva. Esta avaliação e o seu futuro estão, contudo, ameaçados pela crise e pelo desemprego, que tornam as vidas precárias e limitam projetos familiares, e pelo desinvestimento no SNS, que coloca em causa o acesso e a qualidade da saúde sexual e reprodutiva das mulheres – um direito que a política da austeridade quer tornar prescindível.

Contra as notícias que divulgaram as ideias de que o recurso ao aborto aumentou muito e principalmente entre as mulheres desempregadas, permito-me citar a análise da UMAR diretamente, para que a evidência das conclusões não possa esgueirar-se por nenhuma fenda cravada pelo preconceito:

Mesmo perante o agravar da situação económica e social de muitas famílias, o aumento do número de Interrupções Voluntárias da Gravidez (IVG) em 2011 foi menor do que nos anos anteriores, desmentindo portanto por completo uma leitura redutora, não comparada e descontextualizada dos dados dos presentes relatórios. (…) Em 2011, registaram-se 19 802 interrupções de gravidezes até às 10 semanas por opção da mulher, o que corresponde a um aumento de 1,2% relativamente ao período homólogo de 2010 (mais 237 IVG do que o ano passado); inferior portanto ao aumento verificado em 2010 (1,8%) e em 2009 (6,7%).

Por fim, verificou-se em 2011 uma alteração na distribuição das mulheres no que respeita à sua situação laboral. Assim, os grupos correspondentes à categoria “desempregadas”, com 19,4% do total dos registos, assim como à categoria “agricultoras, operárias, artífices e outras trabalhadoras qualificadas”, com 19,0%, registaram um aumento em relação aos anos anteriores. De facto, em anos anteriores, verificava-se um predomínio das categorias “trabalhadoras não qualificadas” e das “estudantes”. Quanto à situação laboral do companheiro, assinala-se o aumento do peso da categoria “desempregado” (8,30% face a 7,26% em 2010). Estes dados mostram o quanto as medidas de austeridade sucessivamente tomadas têm tido um efeito devastador na vida dos portugueses, nomeadamente das portuguesas, lançando mais mulheres para o desemprego e para a pobreza, o que justifica a alteração na distribuição das mulheres que realizaram uma IVG no que respeita à sua situação laboral.

Os números que dizem respeito aos gastos do Serviço Nacional de Saúde com a IVG também merecem a nossa atenção particular:

Em 2011, 66,9% das IVG por opção da mulher foram realizadas em unidades oficiais de saúde (SNS), o que constitui uma diminuição de cerca de 2,6% relativamente a 2010. O fato do Estado ter gasto mais em despesas relacionadas com a IVG (cerca de 500 mil euros adicionais de 2010 para 2011), como salienta o jornal Público (edição impressa de 4 de Maio), deve-se em grande parte não só ao número elevado de objetores/as de consciência no serviço público como também ao desinvestimento verificado no Serviço Nacional de Saúde que obriga muitas mulheres a recorrer ao privado, muitas vezes de resto encaminhadas pelas próprias unidades públicas de saúde que contratualizaram com entidades privadas.

Há ainda muitos mais dados importantes, não os posso citar todos aqui. Mas o que exponho basta para quem quer acompanhar a situação e não quer recuar na democracia.

O aborto é um direito e os direitos não podem ser taxados.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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