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A praxe como escola de vida

Na praxe os direitos humanos ficam à porta, incluindo o direito à indignação, à desobediência e ao pensamento próprio.

Sei que esta altura do ano não é a melhor para discutir a praxe. Dentro de pouco tempo, virá a Queima das Fitas, a festa que marca o fim da praxe. Sei que depois da queima verei muitos/as estudantes que foram praxados/as a jurarem que nuca foram obrigados/as a fazer nada que não quisessem e que se divertiram imenso, mesmo se passaram quase todo o ano letivo a encontrar formas de fugir à praxe, mesmo se chegaram ao ponto de ter medo de voltar à faculdade onde estudam. Sei que muitos/as destes/as estudantes estarão no início do próximo ano letivo a receber os/as novos/as alunos/as com um ritual iniciático baseado na submissão e no rebaixamento. Sei que farão a outros/as aquilo que não gostaram que lhes fizessem. Mas há um acontecimento importante que me motiva a voltar a este tema.

Pela primeira vez na história da academia de Coimbra, um grupo de professores/as decidiram tomar uma posição sobre a praxe. Uma petição, subscrita já por mais de 100 professores/as, exige da parte da reitoria o esclarecimento dos/as alunos/as relativamente aos seus direitos e à não obrigatoriedade da praxe1. A petição foi lançada dias antes de ter sido tornado público mais um caso de violência praxista, em que um praxista agrediu duas alunas que tiveram a ousadia de pôr em causa a hierarquia da praxe. Estes acontecimentos causaram um turbilhão na universidade, ao ponto de o Conselho de Veteranos, órgão máximo da praxe, ter decretado, ineditamente, uma suspensão das atividades de “mobilização e gozo ao caloiro”, para conduzir o seu inquérito interno. Uma suspensão que não está a ser respeitada, é claro, mas que mesmo assim mostra como os praxistas estão cada vez mais na defensiva.

A defesa dos/as praxistas baseia-se numa velha receita, que consiste em, num momento, generalizar o conceito de praxe de forma a abranger todo o tipo de costume e tradição de uma academia para, num momento posterior, restringir o conceito de forma a excluir todos os atos de violência que se tornam públicos. Esta foi a linha condutora do discurso de quem foi defender a praxe num debate promovido recentemente pelos/as professores/as subscritores/as da petição acima mencionada: nós não temos nada a ver com o caso de agressão a alunas porque aquilo não era praxe, era outra coisa qualquer. Uma defesa tão conveniente quanto desonesta.

Este tipo de argumentação tenta explorar uma confusão que existe ainda na mente de muitas pessoas sobre o que é a praxe, confusão que as leva a repetir a infelizmente comum máxima “eu não sou anti-praxe, sou contra os abusos de praxe”. Podemos desfazer esta confusão e perceber que a praxe boa e sem abusos é algo que nunca existiu nem nunca existirá percebendo o que é este ritual iniciático, em que tipo de princípios se baseia e que tipo de valores transmite.

Quando alguém fala de praxe, refere-se invariavelmente àquilo que os praxistas chamam o “gozo ao caloiro” e não a atividades académicas como a Queima das Fitas, apesar de estas estarem relacionadas com a praxe. Ora, o que temos no “gozo ao caloiro” é um sistema de poder que divide os estudantes em categorias estanques e hierarquizadas de acordo com o número de inscrições. Na base da hierarquia estão os/as novos/as alunos/as, que terão de obedecer a todo o tipo de ordens dadas pelos/as alunos/as com mais que uma inscrição, os/as “doutores/as”, por muito humilhantes e degradantes que sejam. No topo da hierarquia está o Dux Veteranorum (aqui escuso de usar o género feminino porque não há mulheres com este grau), o estudante com mais inscrições, que anda a arrastar-se pela universidade há tempo suficiente para ser pai ou até avô dos/as novos/as alunos/as.

Pelo exposto, já dá para compreender que o sistema de poder praxista é auto-instituído, anti-democrático e até protofascista. Mas há pior. A praxe, enquanto ritual iniciático, transmite todo o tipo de valores reacionários. Valores como a submissão, o sexismo, a homofobia e o corporativismo são exaltados, numa “escola de vida” na qual se ensina a supressão do pensamento crítico, a obediência cega à ordem estabelecida e a necessidade de impor hierarquias de tipo militarista na sociedade. Aqueles/as que passaram pela praxe e dizem que lá aprenderam a lidar com as adversidades da vida são os/as que mais facilmente se sujeitam a todo o tipo de atropelos aos seus direitos. Não é um acaso o facto de ser extremamente difícil encontrar praxistas nas esferas do associativismo, dos movimentos sociais e da esquerda, tal como não é um acaso o facto de a praxe ter sido interrompida por duas vezes no século XX por pressão dos/as estudantes mais progressistas (primeiro com o republicanismo e depois com o anti-fascismo).

Mas quem ainda quer agarrar-se à posição de defesa da “boa praxe” contra a “má praxe” pode argumentar que é possível reformar a praxe, tornando-a mais respeitadora dos direitos humanos e dos princípios básicos da democracia. Mas uma praxe que não seja o que descrevi acima não seria uma praxe. Como admitiu o Dux de Coimbra em entrevista ao jornal “A Cabra”, num acesso de lucidez impróprio de quem tem orgulho de ser o pior aluno da sua universidade: “A praxe é hierárquica, é machista, é sexista. São características intrínsecas à praxe da UC e quando isso deixar de existir, deixa de ser a praxe da UC”.

Pelo exposto já dará para compreender que a expressão “abuso de praxe” é um pleonasmo. Mas, insistirão os/as mais fervorosos/as praxistas, é possível que deixe de o ser, caso seja cumprido à risca o Código de Praxe2. Nada mais falso.

Este código que regula a praxe é extremamente detalhado na descrição da hierarquia que cria entre estudantes e na estipulação de normas para a farda praxista (o traje). O código mostra como há na praxe uma enorme preocupação com a ritualização, ao nível do que encontramos em sociedades fechadas e elitistas, como a maçonaria. Mas não há nele qualquer norma que preveja o direito básico de não aceitar a praxe nem se encontra nas suas disposições qualquer preocupação com evitar atentados à integridade física e psicológica dos/as novos/as alunos/as. Este código não pode prevenir o abuso porque tudo o que faz é legitimar o abuso.

Insistirá ainda o/a defensor/a da praxe que devemos levar tudo isto na brincadeira. Quando um praxista obriga uma aluna a simular atos sexuais com um colega, ela deve aceitar isso como uma brincadeira. Quando uma praxista obriga um aluno a por-se de quatro e comer relva, ele deve levar isso numa boa e não ver o ato de humilhação como um ato de humilhação. Aqui temos mais uma norma da praxe: quem passa por ela tem de aceitar tudo com um sorriso na cara. Na praxe os direitos humanos ficam à porta, incluindo o direito à indignação, à desobediência e ao pensamento próprio.

Pensemos por um momento como seria um país governado desta forma. Uma gerontocracia em que a idade dá acesso automático ao poder absoluto sobre os/as mais novos/as. Um sistema de governo com instituições fechadas, não eleitas e autocráticas. Um código legal que estipula sanções corporais para quem não respeita as suas disposições, aplicado por milícias ao serviço do poder ditatorial. Um culto da virilidade que obriga os homens a serem machistas e homófobos e remete as mulheres para a subalternidade. Um elogio da submissão e do rebaixamento que coage os/as oprimidos/as a aceitar a sua opressão. Chamar a um regime político com estas caraterísticas uma ditadura fascista seria um elogio.

Compreendendo isto, conseguimos compreender porque é que a violência faz parte da praxe. As formas de violência exercida vão evoluindo, notando-se hoje claramente uma predominância da violência psicológica sobre a violência física quando a praxe é realizada em locais públicos, assim como o remetimento das praxes mais violentas fisicamente para espaços de menor visibilidade. Mas isto é o máximo que podemos esperar de um sistema de poder em que os direitos de quem obedece dependem do “bom senso” (seja lá o que isso for) de quem manda. Os casos de violência praxista não acontecem apesar da praxe, acontecem por causa da praxe.

Desde que fui confrontado com a praxe que defendo o seu remetimento para o baú da história, onde despejamos tantos outros costumes aberrantes. Acredito que ainda serei capaz de visitar um museu das tradições extintas, onde poderei ver o código de praxe ao lado das bandarilhas das touradas e dos livros de boas maneiras para mulheres do tempo do fascismo. Quanto tempo mais terei de esperar por esse dia depende sobretudo, mas não só, da comunidade académica e da sua capacidade para encarar a luta anti-praxe como parte integrante da luta por uma universidade cada vez mais democrática e inclusiva. Esta petição de professores/as de Coimbra é um importante passo nesse sentido.


Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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