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Guiné-Bissau: “É preciso consolidar o caminho da democratização”

Sumaila Jaló descreve como a violência do regime ditatorial de Umaro Sissoco Embaló se traduz, nomeadamente, em perseguições políticas, delapidação da escola pública e do sistema de saúde e agravamento da corrupção, com o presidente guineense a rodear-se das figuras políticas e dos empresários “mais perversos” que existem na Guiné-Bissau. Um regime que tem contado com o apoio de países como Portugal e França, porque “a presença e permanência no poder de Umaro Sissoco Embaló possibilitam maior acesso à instrumentalização da Guiné-Bissau para os seus interesses”.
Assumindo que, no campo político-partidário, “de um lado e de outro, as escolhas não são muito confiáveis”, Sumaila Jaló esclarece, no entanto, que o que está em causa neste momento é uma escolha entre “o caminho para a democratização” ou “o caminho da estagnação e da instituição do medo, de ideais profundamente retrógrados”. E que as eleições presidenciais do próximo ano são fundamentais neste contexto.
O ativista e investigador guineense fala sobre as “transformações sociais muito interessantes no domínio do envolvimento político da juventude, através de movimentos sociais de várias formas”, que a Guiné-Bissau tem conhecido desde 2012. Esta é “uma luta em processo que, a continuar, pode provocar mudanças positivas e profundamente progressistas”, refere.
Conforme defende Sumaila Jaló, não existirá justiça social e igualdade na Guiné-Bissau se à testa do Estado não existirem pessoas e instituições que “assumam essas agendas como prioritárias”.
Em que contexto político, social, e até económico, se realizaram as eleições legislativas do passado mês de junho?
As eleições de junho passado aconteceram num contexto dificílimo e de um autoritarismo profundamente violento. Uma ditadura instituída há três anos, agora vamos para o quarto, desde 27 de fevereiro de 2020, com a assunção unilateral da presidência da República por parte do atual presidente Umaro Sissoco Embaló, na altura à revelia de um contencioso eleitoral que decorria no Supremo Tribunal de Justiça. Desde então, e sobretudo até às eleições de junho, a Guiné-Bissau viveu um ambiente de perseguições políticas aos adversários do presidente da República e da sua sensibilidade política, de raptos e espancamentos de cidadãos que não se alinham no seu autoritarismo, ou que contrariam a sua ditadura e a da sua família política, e de disfunção total da administração pública. Exemplos mais claros disso é que, desde 2019, isto herdado do anterior governo, até 2022, as escolas públicas simplesmente não funcionaram na Guiné-Bissau. Ou seja, tivemos três anos letivos inválidos. E o nosso sistema de saúde, se já era profundamente débil, com o regime encabeçado por Umaro Sissoco Embaló, transformou-se num caos.
Para termos uma ideia disso, durante a pandemia, desde 2020, quando começaram a existir mais casos de infeção da covid-19 na Guiné-Bissau, até final de 2022, em vez de os centros de saúde, os hospitais e o dispositivo do sistema de saúde serem usados para mitigar a disseminação da pandemia e proteger as populações, as forças de segurança foram utilizadas para reprimir cidadãos, para impedi-los, sobretudo às mulheres, que são a base da economia nacional através das suas atividades informais nos vários mercados do nosso país, de terem acesso aos lugares onde fazem os seus negócios para a subsistência das suas famílias. Eram polícias por todos os cantos, sobretudo nas cidades do país, nas zonas mais urbanas, a perseguir pessoas, a impedi-las de fazer as atividades indispensáveis à sua sobrevivência. Esta perseguição gerou uma onda de fome, o que acabou também por acentuar a disseminação da própria pandemia ao longo do país, e agravar outras formas de doenças que o sistema de saúde, na sua debilidade, já estava a combater com poucos meios.
Pegando na vigência da pandemia, procurava-se desculpar a incapacidade do regime no sentido de resolver as reivindicações dos professores do ensino público que, desde 2019, demandavam salários em atraso. Centenas de docentes foram retirados do sistema de ensino, com o argumento de que o governo já não tinha condições para suportar a contratação destes profissionais e arcar com os seus salários. Estamos a falar de um contexto em que há localidades do interior do país onde as escolas simplesmente não funcionam por falta de professores. Ou seja, mesmo que essas centenas de professores tivessem continuado no sistema, continuaríamos a ter localidades sem professores e com escolas de portas trancadas porque há falta de profissionais. É nessas circunstâncias que o Estado retira professores do sistema com o argumento da falta de verbas para arcar com os seus salários. Ao mesmo tempo, o próprio Estado continua a formar professores para depois não serem colocados e serem remetidos para a situação de precariedade, de desemprego e de abandono total.
Foi nesta situação, com todas estas dificuldades e com o país a ser governado por um regime ditatorial violento, que fomos para as últimas eleições em junho.
Mas é preciso abrir aqui uns parênteses e dizer que o sistema eleitoral da Guiné-Bissau, apesar de todas as dificuldades que o país tem enfrentado, é um sistema relativamente seguro, e as eleições são monitorizadas por entidades de fiscalização eleitoral, como a União Europeia, União Africana, a CPLP e outros observadores internacionais, ainda que estes tenham o hábito fugir da responsabilidade de assumir posições claras em relação a várias tentativas que possam existir para a colocação em causa da verdade eleitoral. Mas se essa monitorização acontecer de forma correta, dificilmente se consegue adulterar os resultados que advenham do voto popular, porque o sistema está montado de modo a que o processo seja acompanhado do início ao fim, e que todos os apuramentos conduzam à verdade eleitoral.
É neste contexto que fomos para as eleições, nas quais o povo deu uma resposta forte contra os partidos que sustentavam o então governo de Umaro Sissoco Embaló.
Manifestação da União Nacional dos Trabalhadores da Guiné-Bissau em Bissau - 2023
Antes de falarmos nas eleições propriamente ditas, queria abordar algo que tens vindo a denunciar. Ao mesmo tempo que se assiste ao empobrecimento da população, existe uma elite que se concentra em torno de Umaro Sissoco Embaló e se alimenta das teias de corrupção. A institucionalização da corrupção também é uma marca deste regime?
Na Guiné-Bissau, a corrupção não se institucionalizou com este presidente, nem com este regime. É todo o sistema político que está podre. É todo o sistema político que está viciado de clientelismo, de corrupção e de outros males que impedem que os recursos públicos sejam canalizados na construção de possibilidades de uma vida mais digna da população guineense.
A assunção do poder do atual presidente da República, e da sua família política, agravou a corrupção. Ao seu lado estão as figuras políticas e os empresários mais perversos que existem na Guiné-Bissau. Pessoas indiciadas de outras formas de crime, como tráfico de droga, como envolvimento em golpes de Estado que já aconteceram no país e saque ao próprio erário público, porque são pessoas que sempre tiveram acesso a cargos públicos que também possibilitam que tenham formas de subtrair do erário público para alimentar os seus dividendos.
É esta família política mais perversa que acompanha o presidente da República e que não tem problemas em usar todos os mecanismos repressivos para se manter no poder e alimentar a continuidade de práticas nocivas no sistema político que impedem o progresso do país e transformações políticas que verdadeiramente tenham impacto nas estruturas do Estado e na vida das pessoas.
Falas em interesses nacionais. Mas existem também interesses estrangeiros neste tabuleiro?
Sim, existem também interesses estrangeiros. A Guiné-Bissau insere-se numa comunidade dominada por países ex-colónias francesas. E essa comunidade é a CEDEAO [Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental], onde a França tem mãos de forma muito escancarada, através de imposição de uma moeda que é a Franco CFA, cujo valor cambial é detido pela França. Ou seja, a subregião da África Ocidental usa uma moeda que é francesa, e cujos dividendos servem mais às finanças e interesses franceses do que propriamente aos países na subregião. Estamos numa luta para mudar esse cenário, ainda não se sabe bem até que ponto conseguimos retirar esse domínio à França.
Mas há outros interesses, também. Guiné-Bissau e Cabo Verde são dois países da África Ocidental que pertencem à comunidade dos países de língua portuguesa. Falo em língua oficial portuguesa porque essa língua não é veicular na Guiné-Bissau, e muito menos em Cabo Verde. Essa comunidade é dominada por Portugal, país que tem usado esse espaço para as suas agendas geopolíticas e agendas diplomáticas, e que se refugia no aspeto do uso da língua portuguesa como oficial nesses contextos para impor o domínio português de forma subjetiva, mas muito marcada e presente, influenciando até agendas no poder. Por exemplo, a consolidação do poder de Umaro Sissoco Embaló só foi possível com a participação do Estado português. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa possibilitaram várias viagens de Umaro Sissoco Embaló, até no momento em que havia o contencioso eleitoral pendente no Supremo Tribunal de Justiça. A viagem do Umaro Sissoco Embaló para Portugal, visitas oficiais em Portugal, e visitas do primeiro-ministro e presidente de Portugal à Guiné-Bissau, entre 2021 e 2022, ajudaram na higienização da imagem desse ditador ao nível internacional, e para a sua legitimação aos olhos dos organismos internacionais que estavam reticentes sobre como se posicionar face à assunção unilateral da presidência da República por parte de Umaro Sissoco Embaló.
Este ditador não parece, portanto, ser incómodo para os interesses franceses ou portugueses. Podemos dizê-lo desta forma?
Exatamente, porque a sua presença e permanência no poder possibilitam maior acesso à instrumentalização da Guiné-Bissau para os seus interesses, não só económicos, sobretudo da parte da França, mas interesses geopolíticos, falando do caso de Portugal.
Manifestação contra a delegação do governo guineense na Feira Internacional de Turismo em Lisboa - 2021.
Que repercussões teve o descontentamento do povo guineense face à situação atual no último ato eleitoral legislativo, e qual foi o papel da juventude, especificamente?
Desde 2012, a Guiné-Bissau tem vivido transformações sociais muito interessantes no domínio do envolvimento político da juventude, através de movimentos sociais de várias formas. Falo, por exemplo, de movimentos artísticos que incluem músicos do rap que se servem desse instrumento para denunciar a situação de miséria e de precariedade em que vive o povo, responsabilizando de forma direta e objetiva a classe política viciada que, ao longo destes anos todos, tem assumido o poder para oprimir o povo. Ou de movimentos associados às artes plásticas, com pinturas de murais que não só ligam o presente ao passado, através de um diálogo estabelecido com os heróis da luta pela independência da Guiné-Bissau, como avançam com exemplos de luta para transformações sociais que tenham impacto na vida das populações.
Mas refiro-me também a movimentos sociais politicamente organizados, sem qualquer vínculo com os partidos políticos, porque não se revêm nas agendas partidárias que fazem o sistema político nacional. Esses movimentos assumem a responsabilidade, a partir de manifestações de rua, a partir das redes sociais e a partir de disputas nos órgãos de comunicação social nas diásporas guineenses e na própria Guiné-Bissau, sobretudo na cidade de Bissau, que é onde se concentra a maior parte das disputas políticas e públicas, de denunciar o sistema e propor caminhos para que o poder seja, de facto, popular, e para que esse poder popular seja exercido em benefício da população. Entre esses movimentos sociais, três deles, com muita presença, são movimentos estudantis, de estudantes não do ensino superior, mas do ensino básico ao ensino secundário.
Existem também agendas femininas e feministas. Movimentos de mulheres que, a partir da Assembleia Nacional Popular, lutam pelo espaço feminino na política e conseguiram, inclusive, uma lei de paridade que permite que os partidos políticos assumam que, pelo menos, 36% dos seus candidatos ao cargo de deputado sejam mulheres. Apesar de o patriarcado latente no sistema político ter impedido dispositivos para transformar essa demanda numa obrigatoriedade, e terem despido à lei de paridade essa parte mais transformadora, e que podia gerar maior impacto na presença feminina no espaço político, este é um passo importante dado em direção à maior presença feminina no espaço político e na tomada de decisões que mudem a sua condição de pessoas subalternizadas.
Outra agenda feminina, mais presente na geração dos 20, 30 anos de idade, aborda questões como violência doméstica, assédio no espaço público, a liberdade para as mulheres participarem na vida pública em pé de igualdade com os homens, e os homens assumirem a vida social na mesma proporção que as mulheres, assumindo as mesmas responsabilidades parentais, as mesmas responsabilidades sociais e as mesmas responsabilidades, até no espaço familiar.
É uma luta em várias direções que tem possibilitado, progressivamente, desconstruções e novas construções no sentido de uma sociedade mais justa e mais igualitária.
Há toda esta movimentação que é assumida por movimentos sociais e por pessoas que, a partir desses movimentos sociais, se exprimem em direção à nova configuração política e social na Guiné-Bissau. É uma luta em processo que, a continuar, pode provocar mudanças positivas e profundamente progressistas na Guiné-Bissau em direção ao que Amílcar Cabral e os seus companheiros sonharam, e que foi a base das suas mobilizações para a luta pela independência. Evoco Cabral para dizer que não é uma coisa nova, não inventámos isso hoje, é a continuidade de uma luta que sabe da sua base ideológica e que sabe a complexidade do contexto nacional, inserido também num contexto internacional desafiante.
Manifestação em Bubaque - Frente de Salvação das Ilhas.
Quais são as expectativas face aos resultados eleitorais e qual é o risco de existir uma crise política e constitucional, na medida em que o presidente não parece disposto a aceitar uma mudança de regime?
O Estado da Guiné-Bissau não é democrático. Se o analisarmos em todas as suas vertentes sociais, políticas, culturais, e por aí fora, não é um Estado democrático. Mas o que está em causa é escolhermos o caminho para a democratização, um processo que iniciámos em 1991 e que tem longos caminhos a seguir, ou então escolhermos o caminho da estagnação e da instituição do medo, de ideais profundamente retrógrados que interrompem esse processo para a democratização.
De um lado e de outro, as escolhas não são muito confiáveis. Na elite política que disputa o poder, há uma sensibilidade menos reacionária com a qual se pode dialogar para a democratização. Essa sensibilidade é, mais ou menos, a que venceu as eleições legislativas de junho. Mas, enquanto a outra sensibilidade mais reacionária e com ideais mais retrógrados continuar na presidência da República, corremos riscos de interrupção da possibilidade de combates num contexto de democratização, com a sensibilidade menos reacionária, e de voltarmos à situação em que ainda não acabámos de sair, advinda dos últimos três anos. Por isso é que as próximas eleições presidenciais serão fundamentais. Mais do que termos uma versão menos reacionária no poder neste momento, mais do que essa versão possibilitar outra forma de debate público e de discussão sobre as prioridades do país em termos sociais, culturais, políticos, e agendas para grandes transformações nas vidas dos guineenses, há um desafio primordial, que é a próxima eleição presidencial.
Porque essa eleição vai ser fundamental para a consolidação de retoma do caminho da democratização. Se sairmos dessa eleição com um presidente da fação menos reacionária, voltaremos ao caminho de debate saudável e de disputas num quadro de democratização com menor grau de violência do Estado sobre quem discorda, sobre quem se opõe, sobre quem aponta para outros caminhos de forma democrática e pacífica. Caso continuemos com a versão mais reacionária na presidência da República, comprometemos o quadro governativo que se iniciou a partir de junho com a vitória da coligação da fação menos reacionária nas legislativas.
E é por isso que as próximas eleições presidenciais são fundamentais. Tudo o que fizermos, todas as conquistas, pequenas ou grandes, que construirmos até as eleições presidenciais estarão em causa, estarão ameaçadas, se continuarmos com o atual presidente depois das eleições que vão acontecer para o ano.
Assumes, à partida, que o quadro eleitoral é fundamental nessa disputa. Mas consideras que a mobilização social, a luta que se trava nas ruas do país, é elementar para essa mudança política?
É fundamental. E esses movimentos estão numa dinâmica de crescente politização. São movimentos que surgiram com os objetivos de responder às exigências do momento. E, à medida que avançam, descobrem que há um problema maior, que há um sistema político ultrapassado que deve ser confrontado. Alguns desses movimentos já avançam para essa politização crescente, que passa por perceber que as demandas das mulheres não serão resolvidas se o espaço político for dominado por sensibilidades patriarcais e machistas. E que as mudanças no setor educativo não acontecerão se a versão mais reacionária do sistema político continuar no poder. E há também a questão da própria consolidação da identidade guineense, que é muito importante num contexto em que há várias identidades expostas ao espaço público. Amílcar Cabral e os seus companheiros não imaginavam a dinâmica para a construção de uma identidade por acaso. Eles não propunham a unidade entre os guineenses como uma fórmula apenas para legitimar depois a unidade com Cabo Verde, como muitas pessoas tendem a argumentar. É uma unidade entre várias identidades étnicas que, se não se unificarem, colocam em causa o projeto da Guiné-Bissau. Aliás, o atual presidente, declaradamente, tudo faz para colocar esse projeto em causa, assumindo discursos do identitarismo divisionista no espaço político, e assumindo que uma parcela da população pode conduzi-lo, de acordo com as suas simpatias religiosas e étnicas, ao poder e garantir a sua permanência nesse mesmo poder. Desta forma abre-se caminho para a Guiné-Bissau ter um problema que antes não tinha: disputas entre essas identidades que conduzem depois a tipos de radicalismos que acontecem sobretudo em países da subregião ao lado da Guiné-Bissau, no Burkina Faso, na Nigéria, no Mali, e por aí fora.
Portanto, esses movimentos sociais, dizia eu, têm esse desafio de cada vez mais se politizarem. Mas essa politização não deve passar pela sua partidarização neste momento. A partidarização não é um crime, e seria um caminho se existisse um partido com a mesma agenda, com os mesmos ideais progressistas e com o objetivo de transformar a sociedade no sentido de maior justiça e igualdade. Mas, não existindo, a politização tem de ser dentro desses próprios movimentos, e na dinâmica da própria luta.
Logo veremos o que dá em termos políticos, mas a assunção desse viés político é fundamental. As transformações que demandamos, todas as transformações femininas, sociais, em termos de educação e saúde, da empregabilidade e do emprego de uma população maioritariamente jovem, a justiça social e a igualdade na Guiné-Bissau nunca acontecerão se não tivermos à testa do Estado pessoas e instituições que assumam essas agendas como prioritárias.
Comentários
Opinião
Posso confirmar que tudo o que está escrito ali dito pelo Sumaila Jaló, é verdade.
Ele sabe observar e alvitrar as coisas.
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