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Videojogos, uma nova fronteira no combate cultural

O livro "Marx no fliperama" é provocador. Mostra o universo dos jogos eletrónicos como palco de um intensa luta de classes e como os trabalhadores que os produzem se organizam na luta por direitos. E até na construção de seus sentidos está a crescer o desafio ao realismo capitalista. Por Rafael Grohmann.
Capa do livro Marx no Fliperama.
Capa do livro Marx no Fliperama.

Porque é que um jogador se deveria interessar pelo marxismo? E porque é que os marxistas se deveriam interessar por games? Jamie Woodcock, neste Marx no Fliperama, busca aproximar esses dois universos, de modo a resolver alguns mal-entendidos. Por um lado, parte da esquerda anticapitalista considera os games como algo menor – como se eles não tivessem nada a ver com luta de classes e exploração do trabalho. Por outro, as imagens hegemónicas do mundo dos games – de raça, género, sexualidade e ideologias – fazem parecer alucinação alguém – e um livro – declarar-se abertamente, ao mesmo tempo, gamer e marxista.

Os games são parte importante dos processos de produção, circulação e consumo inscritos no modo de produção capitalista, mas também nos podem servir para imaginar outros tipos de sociedade para além de um realismo capitalista (Fisher, 2011). Woodcock cita algumas vezes Raymond Williams (2017) e Stuart Hall (2003) para inscrever os jogos no circuito da cultura, enquanto formas culturais, incluindo questões de trabalho e representações.

A noção de circuito da cultura em Hall (2003) é homóloga ao circuito do capital esboçado por Marx (2011) nos Grundrisse para tratar das dialéticas relações entre produção e consumo como momentos diferentes de um mesmo processo. É aí que está a célebre frase: “a fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente” (Marx, 2011, p. 47). Consumo e produção afetam-se mutuamente, e Jamie Woodcock mostra-se atento a isso ao analisar tanto o trabalho na indústria de games quanto os próprios jogos.

Há articulações complexas nos circuitos do capital e da cultura, produzindo e circulando sentidos sobre tudo o que acontece na vida. Mas isto não se dá no vazio. É neste circuito de sentidos o lugar em que os significados podem ser estabelecidos e contestados, sedimentados e re-significados, com tentativas de controle e possibilidades de resistências aos modos de significar o mundo. Os jogos, pois, estão envolvidos na teia de sentidos – com formas de representar o mundo e de se representar tanto na produção quanto no seu consumo.

São esses os dois eixos de análise de Marx no Fliperama, entre o produzir e o jogar videogames. Por um lado, é necessário expandir a própria noção do que significa um jogo político. Afinal, todos os games são políticos. Eles não estão apartados da realidade e apresentam a marca de criadores e empresas. Produzem determinados sentidos em relação a outros, fazendo circular, por exemplo, ideologias racistas, misóginas e homofóbicas nas suas produções. Muitas vezes naturalizam o capitalismo e a sua racionalidade como modo de vida. Porém isso não deve significar a censura desses jogos, mas a sua devida crítica política e mediática, podendo, inclusive, resultar em revoltas. E assim como não podemos resumir o cinema a Hollywood, não se pode cristalizar os significados do que é um game a partir de seu lado mainstream. É preciso lutar por outras narrativas nos jogos.

Em 1996, a professora Maria Aparecida Baccega, da USP, que deixou um legado marxista para a área de comunicação, foi uma das primeiras pesquisadoras a aparecer nas “Páginas Amarelas”, da revista Veja, e chocou intelectuais ao dizer: “novela é cultura” – e que aliena menos que os telejornais. Para ela, a telenovela educa mesmo quando traz a reprodução de estereótipos e preconceitos por possibilitar a produção de crítica e, a partir disso, lutar por outras produções de significados.

A mesma coisa ocorre com os games. Vistos como algo menor e em si mesmo alienantes, são desprezados por parte da esquerda por serem “apenas” uma brincadeira. Esse comportamento ignora que muitas pessoas – jovens, mas não exclusivamente – negociam sentidos culturais e políticos a partir das suas relações com os jogos e que a vida sob o capitalismo precisa de momentos de lazer, divertimento e prazer. Afinal, é preciso uma vida que seja cheia de sentidos dentro e fora do trabalho (Marx; Engels, 2007; Antunes, 2001).

Assim, devemos nos contrapor à gamificação incrustada na gestão das empresas – como dispositivo da racionalidade neoliberal (Dardot; Laval, 2016) ligada à produtividade e ao controle dos trabalhadores – com uma gamificação “vinda de baixo”, que, de facto, apoie as lutas dos trabalhadores e a recusa em relação ao trabalho. A gamificação não é algo neutro, e geralmente é usada para deixar a aparência de um trabalho mais divertido, um playbour (Küklich, 2005) invisibilizando a intensificação do ritmo de trabalho e a concorrência entre os trabalhadores.

Além disso, os games são uma indústria rentável no capitalismo, sendo produzidos por milhares de trabalhadores em determinadas condições de trabalho. Woodcock estuda a indústria de jogos a partir de uma atualização do inquérito operário marxiano [1] como método para investigação com trabalhadores que não se resuma à análise das suas condições de trabalho, mas algo que “requer apoio às lutas reais dos trabalhadores, experimentando novas formas de co-pesquisa que deem primazia ao ponto de vista e à ação dos trabalhadores” (Englert; Woodcock; Cant, 2020, p. 56). Isto significa uma investigação engajada tanto na sua contribuição académica quanto na organização dos trabalhadores, que deve ser vista como uma construção “de baixo” e não forçada “de cima” – seja por órgãos reguladores, sindicatos, partidos ou académicos – sem, de facto, dialogar com os trabalhadores sobre as suas reais reivindicações.

A atualização do inquérito operário, com inspiração no operaísmo italiano e construída de forma coletiva pela revista socialista Notes From Below, parte da noção de composição de classes, que envolve dimensões técnicas, sociais e políticas. Isso significa considerar desde as condições e a organização do trabalho (inclusive métodos de controlo e gestão), passando por marcadores sociais (de género, raça e sexualidade, por exemplo) dos trabalhadores e como é a vida para além do tempo de trabalho – e que se afetam mutuamente no que chamamos de “mundo do trabalho”. A composição de classes também abarca como a organização dos trabalhadores se transforma numa força política na luta de classes.

E, pasmem, quem trabalha na indústria de games é um… Trabalhador. As condições de trabalho na área dependem de fatores como o tipo de empresa (se produz game AAA, é independente ou cooperativa, por exemplo), mas, em linhas gerais, há longas e intensas jornadas de trabalho, com o esboroar de fronteiras entre lazer e trabalho. Há, ainda, uma cooptação das subjetividades dos trabalhadores pela ideologia do “faça o que você ama” (Illouz, 2011) e a naturalização do stresse e das noites mal dormidas nos momentos antes da entrega de um projeto (crunch time). Isto acontece também através de uma glamourização e/ou idealização do trabalho nos games, como acontece também em outras áreas, como o jornalismo, por exemplo (Figaro; Nonato; Grohmann, 2013).

Além disso, a divisão de trabalho na indústria de games estrutura desigualdades e invisibilidades no setor, algo também retratado por Ergin Bulut (2020) em A Precarious Game: the illusion of dream jobs in the video game industry. Isso significa considerar desde o trabalho não pago de modders e testadores até a predominância branca e masculina no segmento AAA. As condições sociais de muitos desses trabalhadores, como não ter responsabilidades com filhos ou trabalho doméstico, ajudam a explicar a própria composição da força de trabalho no setor. As condições precárias de trabalho também envolvem a área de eSports. No Brasil, o Ministério Público do Trabalho abriu inquérito para investigar as condições de trabalho e os impactos na saúde de trabalhadores em clubes de eSports.

Além dos aspetos mencionados acima, para compreender o trabalho na área dos games, é preciso considerar todo o circuito de trabalho (Qiu; Gregg; Crawford, 2014) nas cadeias produtivas de valor. Isso significa analisar as materialidades envolvidas na produção de um videojogo com todas as suas peças a partir das atividades de trabalhadores de várias áreas. Que caminho uma consola faz até chegar ao consumidor, desde a extração de minérios até a produção de videojogos na China, passando pela sua distribuição? E a produção e a circulação dos jogos, desde a conceção e o desenvolvimento até chegar ao Steam ou Switch, por exemplo? Isto levando em conta tanto as condições de trabalho quanto as próprias infraestruturas materiais, pois, como lembra Huws (2014, p. 157), não há cultura digital “sem geração de energia, cabos, satélites, computadores, telefones, telemóveis e milhares de outros produtos materiais, sem a extração de matéria-prima que forma essas mercadorias”.

Neste cenário, os trabalhadores da área de games estão a reconhecer-se como trabalhadores e a organizar-se coletivamente, como o Game Workers Unite (GWU), movimento internacional de base com objetivo de sindicalizar a indústria de games, convocando os trabalhadores a organizarem-se, de baixo para cima, a partir de células locais. O GWU já está presente em doze países, inclusive Argentina e Brasil. As suas lutas são para reduzir a exploração do trabalho, que os trabalhadores sejam ouvidos, em organização distribuída e contra linguagens e comportamentos opressores. Outro caso citado por Jamie Woodcock é o Independent Workers’ Union of Great Britain (IWGB), que reúne, entre outros, entregadores, motoristas e também trabalhadores de games.

Estes movimentos prefigurativos evidenciam que nenhum trabalhador é “inorganizável”. Se há novos métodos de controle e organização do trabalho, é preciso que haja novas maneiras de organização e resistência dos trabalhadores. E esse é o laboratório da luta de classes (Cant, 2019) também encarnado na área de games. O facto dos trabalhadores ainda não estarem organizados não significa que não haja resistência ou potencialidade de organização coletiva. E isto não nasceu ontem. Há uma mistura de elementos e pessoas com historial no sindicalismo e outras que estão a experienciar a sua primeira vez numa organização coletiva.

As experiências acima somam-se a novas formas de associação e organização de trabalhadores das plataformas digitais que têm ocorrido nos mais diversos setores e países. Nesses movimentos, a comunicação também é a base para a organização e ocorre também por plataformas digitais, desde WhatsApp e Facebook até Discord, justamente destinada a gamers. É através destes espaços que os trabalhadores produzem conteúdo, discutem ideias e organizam ações.

Há questões materiais e concretas que conectam os trabalhadores dos mais variados países num momento de derrocada do que Nancy Fraser (2020) chama de “neoliberalismo progressista” – e que perdeu a sua capacidade de convencer. A pandemia do coronavírus explicitou ainda mais as condições precárias e a exploração do trabalho, assim como a deterioração das subjetividades dos trabalhadores. E isso abre possibilidades para ampliar a circulação das lutas dos trabalhadores: “podemos começar a ver o germe de uma alternativa que surge da recusa dos trabalhadores das plataformas” (Englert; Woodcock; Cant, 2020, p. 56).

A circulação das lutas dos trabalhadores de games também envolve lutas por outras circulações de sentidos, por outras narrativas. Não existe luta anticapitalista que não passe pelo circuito da cultura. Um exemplo é o jogo Tonight We Riot, produzido pela Pixel Pushers Union 512 e distribuído pela Means Interactive, ambas cooperativas de trabalhadores. Explicitamente socialista, o jogador não comanda uma pessoa só, mas um movimento de trabalhadores contra o capitalismo a partir de ação direta: “enquanto um de nós sobreviver, a Revolução continuará”.

Outro exemplo é o Workers Game Jam, encontro de desenvolvedores para criação de jogos que tenham como foco a organização coletiva dos trabalhadores, desde a negociação de salários até à organização de piquetes, protestos e greves. Organizado por Game Workers Unite e Notes From Below, o encontro teve a sua segunda edição em 2020, inclusive com a participação de brasileiros.

Marx no Fliperama é uma potente contribuição para lutar por outras circulações – de sentidos e dos trabalhadores, de forma a acentuar o caráter experimental, laboratorial e radical dos games (Dyer-Witheford; de Peuter, 2009), imaginando e explorando alternativas ao realismo capitalista. O caso do Tonight We Riot também é parte de um movimento prefigurativo por outras formas de trabalho na área dos games, que, de facto, auxiliem na circulação das lutas dos trabalhadores. Jamie Woodcock faz-se pensar por que jogos e indústria/trabalho em games devemos lutar. Que façamos experiências narrativas e organizativss (sempre políticas) em relação à luta anticapitalista. Boa diversão!


Rafael Grohmann é professor de Mestrado e Doutoramento em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e editor da newsletter DigiLabour. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.

Prefácio de Marx no Fliperama de Jamie Woodcock publicado no Brasil pela Autonomia Literária.

Publicado originalmente no Outras Palavras. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.


Referências

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2001.

BACCEGA, Maria Aparecida. Novela é cultura. Revista Veja. Ano 29, n. 4, 24 de janeiro de 1996, p. 7-10.

BULUT, Ergin. A Precarious Game: the illusion of dream jobs in the video game industry. New York: ILR Press, 2020.

CANT, Cant. Riding for Deliveroo: resistance in the new economy. London: Polity, 2019.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.

DYER-WITHEFORD, Nick; DE PEUTER, Greig. Games of Empire: global capitalism and video games. Minnesota: University of Minnesota Press, 2009.

ENGLERT, Sai; WOODCOCK, Jamie; CANT, Callum. Operaísmo Digital: tecnologia, plataformas e circulação das lutas dos trabalhadores. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos. v. 22, n. 1, 2020, p. 47-58.

FIGARO, Roseli; NONATO, Claudia; GROHMANN, Rafael. As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista. São Paulo: Atlas, 2013.

FISHER, Mark. Capitalist Realism. Winchester: Zero Books, 2011.

FRASER, Nancy. O Velho Está Morrendo e o Novo Não Pode Nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. São Paulo: Ed. UFMG, 2003.

HUWS, Ursula. Laborin the Global Digital Economy. New York: Monthly Review Press, 2014.

ILLOUZ, Eva. O Amor nos Tempos do Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2011.

QIU, Jack; GREGG, Melissa; CRAWFORD, Kate. Circuits of Labour: a labour theory of the iPhone Era. Triple C. v. 12, n. 2, p. 1-15.

WILLIAMS, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2017.


Nota:

[1] Woodcock explica este método com mais detalhes num texto com Sai Englert e Callum Cant sobre o operaísmo digital (Englert; Woodcock; Cant, 2020).

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