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A mentira do argumento “não há médicos para contratar”

Apenas metade dos médicos inscritos na Ordem estão efetivamente a trabalhar no SNS.

Faltam profissionais ao Serviço Nacional de Saúde. É um facto indesmentível e mensurável no dia a dia dos utentes e dos profissionais do SNS.

Em Setúbal, a falta de médicos já levou à perda da idoneidade formativa em oncologia e impossibilita a utilização dos vários blocos operatórios existentes. No Egas Moniz [em Lisboa], o serviço de cirurgia é obrigado a enviar cada vez mais doentes para hospitais privados por falta de anestesistas. Em Leiria, faltam 50 médicos especialistas e no Algarve cerca de cem.

São carências que têm consequências: serviços de urgência que encerram por dificuldade em fazer escalas, especialidades com longuíssimas listas para consulta e cirurgia, sendo disso exemplo os inadmissíveis 908 dias de espera para uma consulta de ginecologia em Faro ou os mais de mil dias para uma consulta de cardiologia na Guarda.

A estas consequências acrescem a multiplicação de horas extraordinárias ou o recurso a empresas ou prestadores de serviços. Em 2020, o SNS pagou mais de 300 milhões de euros em horas extraordinárias e 130 milhões com empresas e prestadores de serviços, muitos dos quais para manter serviços de urgências a funcionar. Em 2021 estes valores serão ainda mais elevados.

Já nos cuidados de saúde primários tem aumentado o número de utentes sem médico de família: 641.228 em setembro de 2019 a comparar com os 1.019.444 deste ano. Faltam profissionais e os concursos ficam cada vez mais desertos. Em Lisboa e Vale do Tejo, onde quase 730 mil pessoas não têm médico de família, mais de 50% das vagas ficaram por ocupar.

Perante esta realidade, o Governo e o PS encolhem os ombros e têm repetido: não há médicos para contratar. Aceitam, por isso, que é uma fatalidade o SNS ficar à míngua, os médicos de família não serem para todos os utentes, os hospitais não conseguirem completar escalas, os blocos operatórios não poderem funcionar.

No debate orçamental, a ministra da Saúde repetiu o argumento. Disse: “Compramos cerca de 5 milhões de horas de trabalho suplementar a empresas prestadoras de serviços e transformar isso em contratação de médicos significaria contratar mais 3500 médicos de que o país não dispõe”.

O argumento tem um problema: não é verdadeiro.

Em dezembro de 2020 existiam 57.976 médicos inscritos na Ordem. Ora, no SNS existiam, no mesmo período, 20.228 médicos (se contarmos os médicos internos, ou seja, ainda em formação, o número era de 29.539). Ou seja, apenas metade dos médicos inscritos na Ordem estão efetivamente a trabalhar no SNS.”

Não é verdade que o país não tenha mais médicos ou que não seja possível contratar mais. O problema principal é que o SNS não está a conseguir atrair médicos, nem sequer está a conseguir fixar todos aqueles que forma.

De facto, a esmagadora maioria dos recém-especialistas são formados no SNS, mas quando se abrem os concursos para contratação muitos deles recusam permanecer no SNS que os formou. Em 2021, ficaram por ocupar 168 das 459 vagas abertas para medicina geral e familiar e apenas foram preenchidas 697 das 1073 vagas para especialidades hospitalares e saúde pública. Todos os anos são centenas de médicos que se vão embora.

Por isso é que, em vez de encolher os ombros, se deve ter medidas para melhorar condições de trabalho dos médicos e de outros profissionais de saúde: rever carreiras, avançar com uma verdadeira exclusividade com incentivos associados ou reconhecer o estatuto de risco e penosidade, por exemplo. Estas são algumas das medidas que o Governo e o PS têm recusado.

Confrontados com o falhanço da estratégia do imobilismo apenas conseguem repetir “não há médicos para contratar”, um lamento falso e que defrauda as pessoas e o SNS.


Artigo publicado no Público a 13 de novembro de 2021.

 

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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