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A propósito da crise política: está tudo hipnotizado?

Um dos mantras que mais contribui para esse hipnotismo é a ideia de que, havendo eleições antecipadas, a direita ganha. Será mesmo? Há algum dado objetivo que confirme isso? Que tal pararmos todos para pensar um pouco? Por Jorge Martins.
Foto Mário Cruz/Lusa

Na crise política resultante do “chumbo” do Orçamento de Estado para 2022, António Costa e o PS têm utilizado doses cavalares, mas altamente eficazes, de demagogia. Na verdade, estas têm funcionado como um conjunto de truques de prestidigitação, que incluem o hipnotismo de grande parte da plateia, com a ajuda da comunicação social, que tem “engolido”, de forma frequentemente acrítica, a maioria do “spin” do primeiro-ministro e do seu partido.

Entre os mais atingidos por esse hipnotismo está um vasto conjunto de eleitores da esquerda não alinhada, bem como gente que simpatiza ou, mesmo, milita no BE e, em menor grau, no PCP. Alguns chegam, mesmo, a protagonizar patéticos apelos ao entendimento entre os parceiros da esquerda parlamentar, propondo soluções que consideram mágicas, como se tivessem acabado de descobrir a pólvora.

Um dos mantras que mais contribui para esse hipnotismo é a ideia de que, havendo eleições antecipadas, a direita ganha e, portanto, ao votarem contra o OE apresentado pelo governo, BE e PCP estarão a entregar o poder à direita. Será mesmo? Há algum dado objetivo que confirme isso? Que tal pararmos todos para pensar um pouco?

A verdade é esta: não há nenhum dado objetivo que indicie que novas eleições trarão uma maioria de direita no Parlamento. Se olharmos para as últimas sondagens conhecidas, nenhuma dá esse resultado. Já estou a ouvir o coro: mas elas falharam nas autárquicas de Lisboa. Certo, mas, pela menor dimensão do universo eleitoral e, consequentemente, das amostras e pela maior abstenção que nelas se verifica, os inquéritos de opinião referentes às eleições para as autarquias tendem a ser menos fiáveis que os das legislativas.

Vamos, então, a Lisboa. É certo que Moedas ganhou a presidência da autarquia, mas tal ocorreu apenas devido ao sistema presidencialista subjacente às eleições autárquicas. Na verdade, a esquerda obteve mais votos que a direita e tem maioria na vereação. Fosse o sistema autárquico português parlamentarista, como na vizinha Espanha, e, muito provavelmente, Medina ainda seria presidente da câmara da capital, apoiado por PS, PCP e BE.

O que é irónico é que, para culpar os partidos à sua esquerda pela crise política que provocaram e “abocanhar” o seu eleitorado, Costa e o PS “comprem” a narrativa de Rio e do PSD, que afirmaram ter tido uma grande vitória nas autárquicas, algo que, em termos numéricos, não é verdade. Mas que as hostes “laranjas” tenham feito passar a ideia, é natural; que os socialistas a utilizem contra os seus antigos parceiros é que se lamenta.

Um dos argumentos utilizados é o do “chumbo” do PEC 4, programa do governo Sócrates, que conduzia ao reforço da austeridade e contra o qual BE e PCP votaram. O então primeiro-ministro demitiu-se, provocando eleições, que foram ganhas pelo PSD de Passos Coelho e deram origem ao governo da “troika”, por ele liderado e com o apoio do CDS de Paulo Portas.

Digo desde já que, ao “chumbar” o referido documento, a esquerda prestou um favor a si própria e ao próprio PS, evitando ficar associada à austeridade e que este último se “queimasse” a aplicar as políticas da “troika”, que, mais PEC, menos PEC, acabaria por vir. Foi penalizada nas eleições que se seguiram a essa votação, mas sobreviveu e ganhou pontos nas seguintes.

Porém, independentemente do que se possa pensar sobre esse episódio, há que convir que a situação, atualmente, é bem diferente da de então. Nessa época, Sócrates, que governou com base na arrogância e no autoritarismo e cujos esquemas menos claros (para sermos benévolos) começavam a vir ao de cima, era execrado à esquerda e à direita. Apesar de acusar algum desgaste e de, muito por culpa própria, ver a sua popularidade diminuir, Costa está muito longe de ter esse índice de execração, em especial à esquerda.

Por outro lado, Passos Coelho tinha assumido, claramente, a liderança do PSD, com um projeto de liberalização da economia, enquanto Portas era líder indiscutido do CDS. Ora, atualmente, não existe, à direita, essa estabilidade que a credibilize como alternativa e a torne atrativa para o eleitorado centrista, como em 2011.

Assim, os “laranjas” encontram-se em plena disputa eleitoral entre Rui Rio e Paulo Rangel, entre os quais se prevê uma disputa cerrada e que, provavelmente, deixará marcas. O mesmo sucede nos “populares”, entre Francisco Rodrigues dos Santos (“Chicão”) e Nuno Melo. Penso, aliás, que, se houver eleições, as formações mais beneficiadas serão a IL e o CH, em especial este último. E, estando mais dividida, mais difícil será à direita obter uma maioria.

Outra ideia que passa é que BE e PCP “mataram” a “geringonça”. Ora, pensava eu que esta tinha sido “assassinada”, após as legislativas de 2019, por António Costa, quando este recusou a proposta do BE de assinar um acordo escrito para a totalidade da legislatura e afirmou querer governar com acordos pontuais, proposta a proposta. Afinal, parece que está toda a gente a assistir a um policial em que o assassino desenterra o cadáver, culpa outros pelo crime que cometeu e a plateia acredita que se está na presença de uma história real.

Claro que tudo isto vem da ideia que Costa e o PS foram transmitindo de que era à esquerda que competia viabilizar, quase de cruz, a proposta de OE apresentada pelo seu governo. E, com isso, vem a mentira de que este é o orçamento mais à esquerda apresentado pelos seus governos.

Pergunto: é de esquerda aumentar a função pública nuns míseros 0,9% (!...), quando os salários desta estão congelados há uma dúzia de anos? Ou seja, quem ganhe 1000 euros passa a ganhar 1009. Não é isto gozar com quem trabalha? E, atenção, que este aumento serve de referência para o setor privado. Ou seja, o governo quer que a esquerda apoie um modelo económico assente nos baixos salários?

E o aumento do pagamento das horas extraordinárias apenas a partir das 120 horas anuais, esvaziando, na prática, o essencial da medida?

E a manutenção do essencial da legislação laboral da “troika”, em especial a caducidade das convenções coletivas, o que dá imenso poder ao patronato, ou a não reposição do princípio jurídico do tratamento mais favorável ao trabalhador, reconhecidamente a parte mais fraca da relação laboral?

E será de esquerda, num país de reformas de miséria, manter um fator de sustentabilidade que obriga as pessoas ou a reformar-se com uma pensão de valor irrisório ou a trabalhar até mais não poder? Ainda para mais, quando este foi criado, era a contrapartida para manter a idade da reforma fixa nos 65 anos. O governo da “troika”, não apenas aumentou esta, como aumentou a taxa referente aquele fator. Não seria obrigação de um governo de esquerda reverter esta medida?

E, perante a proposta do BE de exclusividade para os médicos do SNS, o executivo apenas os proíbe de exercer cargos no setor privado, mas não de nele trabalhar. Acham que somos todos parvos? E deve a esquerda apoiar um governo que se recusa a contratar mais profissionais para o SNS, deixando este à beira da rutura?

E será de esquerda manter o investimento público quase congelado e que consagre apenas 0,25% da despesa para a Cultura?

Virão alguns com o velho mantra: “não há dinheiro” e “a esquerda só quer mais despesa”. Respondo, desde logo: E há dinheiro para as ruinosas PPP rodoviárias e da saúde? E para as rendas da energia? E para cobrir as numerosas fraudes bancárias, do BPN ao BES/NB, passando pelo BPP e pelo BANIF? E, do lado da receita, que tal taxar as grandes fortunas e criar um imposto sobre o património? E aumentar os impostos sobre as mais-valias obtidas em bolsa? E dou de barato a fuga para os “paraísos fiscais”, que é difícil de travar unicamente a nível nacional.

Sem essas despesas, que se limitam a sustentar os parasitas da nossa economia, e com essa receita adicional, que poria muitos deles a pagar, haveria dinheiro para reforçar o SNS, a escola pública, a segurança social e investir na modernização da rede rodoviária e na preparação do país para as alterações climáticas, ou seja, para fazer verdadeiras políticas de esquerda. E até sem pressionar muito o défice.

Dirão outros que algumas destas reivindicações da esquerda, como a alteração das leis laborais, vão para além do OE. Só que a questão não é essa. Para viabilizarem o orçamento, BE e PCP pedem, legitimamente, contrapartidas noutras áreas. E aposto que, perante uma eventual proposta de medidas desse tipo após a aprovação daquele, muitos dos que agora vêm com essa argumentação seriam os primeiros a apontar que elas teriam um significativo impacto orçamental e violariam a lei-travão.

Acresce, ainda, que os partidos da esquerda já estão “escaldados” com a viabilização de anteriores orçamentos. Para além das famosas cativações de Centeno, continuadas por Leão, que limitam muito das medidas com eles acordadas, o PS acaba por não concretizar grande parte delas, como sucedeu com as promessas feitas o ano passado ao PCP e que levou aquele partido a abster-se, viabilizando o OE. Não fosse por acaso que o BE solicitou ao PS um acordo escrito, caso tivesse havido um entendimento nesse sentido.

Uma contradição importante é que muita gente que apela aos partidos da esquerda para viabilizar o orçamento, critica, frequentemente, o taticismo e o pragmatismo sem princípios de outros, em especial do PS. Ora, BE e PCP sabem que, em eleições antecipadas, tenderão a ser responsabilizados pela crise e, consequentemente, penalizados pelo eleitorado. Se pensassem apenas nos seus interesses a curto prazo, aprovariam o OE, mesmo indo contra os seus valores. Por isso, é extremamente injusta a crítica que os acusa de apenas pensarem neles próprios e não no país.

Face ao exposto, o que podemos concluir?

É óbvio que a possibilidade de a direita obter uma maioria parlamentar não deve ser descartada. Mas, pelos dados objetivos que existem neste momento, não parece a mais provável. Então, porque motivo uma parte significativa do povo de esquerda parece considera-la a mais possível, quiçá uma inevitabilidade? Não estarão, com isso, as pessoas que assim pensam a tornar esse hipotético cenário numa profecia autoconcretizável? É que parece mesmo que está tudo hipnotizado pelo “spin” que Costa e o PS têm espalhado e que a comunicação social reproduz quase sempre de forma acrítica.

Há quem refira que o eleitorado de esquerda ficará desmoralizado e não irá votar, facilitando a vitória da direita. Mas, se estão (e bem) preocupados com essa eventualidade, acham que a abstenção é solução? Não me parece que as pessoas de esquerda sejam assim tão estúpidas.

E, já agora, vale a pena, para penalizar BE e PCP, transferirem o voto para o PS, enfraquecendo os dois partidos à sua esquerda? Será que já esqueceram a maioria absoluta de Sócrates? Além de que tal maioria não será mais que uma miragem, uma quimera que Costa persegue desde 2017.

Nada está decidido e cabe a nós todos, à esquerda, contribuir para que a relação de forças que sair das próximas eleições permita que a governação dê uma “guinada à esquerda”.

Por isso, o apelo que faço, é este: Calma! Nada de pânico! Sejamos racionais e não nos deixemos levar por emoções primárias nem enganar por demagogias baratas que apenas servem para nos hipnotizar. E, ao contrário do que Costa e o PS pensam, é esse hipnotismo que serve a direita!

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