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Pôr pedras nos assuntos: a Câmara do Porto e o monumento ao “Ultramar”

O passado colonial português é ainda hoje uma cortina de fumo, um quase tabu, um não assunto. É a velha estratégia de pôr uma pedra no assunto e organizar publicamente o esquecimento. A Câmara Municipal do Porto decidiu associar-se recentemente a esta estratégia.

O passado colonial português é ainda hoje uma cortina de fumo, um quase tabu, um não assunto. Sobre o colonialismo português gravita um enredo de silêncios comprometidos, onde se aliam adesões instantâneas a versões adocicadas da história e formas de organizar publicamente uma narrativa que não convém que se discuta. E uma das formas de contornar a discussão, de omitir os problemas, de prolongar os impensados, é impor a visão única no meio da praça, no meio da rua, encorajando os transeuntes a não pensar para além do que lhes salta imediatamente ao caminho. É a velha estratégia de pôr uma pedra no assunto e organizar publicamente o esquecimento, num processo naturalmente mais grave para as suas vítimas diretas.

A Câmara Municipal do Porto decidiu associar-se recentemente a esta estratégia quando, com pouco ou nenhum debate público, decidiu apoiar a instalação de um “Memorial do Porto aos Combatentes do Ultramar”. A instalação do referido monumento levanta problemas diversos, de natureza ética, histórica e política, omitidos pela adesão instantânea e sem debate a uma narrativa oficializada, sem contraditório nem alternativa. Sublinhemos apenas duas dimensões desses problemas.

Um memorial erguido aos “combatentes de Ultramar”, para além de omitir as vítimas continuadas da exploração e do racismo, compromete os seus homenageados com a missão que não escolheram

Desde logo a sua designação, com a referência direta a “Ultramar”. Como sabemos, esta designação decorre diretamente do aparelho ideológico da ditadura do Estado Novo, que engloba territórios maioritariamente africanos num Portugal único e supostamente indivisível, nele agregando o que o texto da alteração constitucional de 51 designou por “províncias ultramarinas” (Vd Miguel Cardina, em texto incluso no volume coletivo O Século XX Português).

A expressão “guerra de Ultramar” não é, por isso, uma terminologia inocente. Ela surgiu como instrumento de legitimação de uma guerra injusta, que neutraliza a violência do que melhor se designa por opressão continuada, por repressão exploratória e racista – por “guerra colonial”. E a consciência desse passado implica, escrevia já Eduardo Lourenço, lembrar que “não houve e não há exemplo de um colonialismo inocente”. Todo ele é violento, como é violento o império que ele permitiu.

A segunda dimensão por debater é justamente a questão do âmbito e alcance da “homenagem” alegadamente intencionada no monumento. Quem se homenageia realmente, quem se escolhe esquecer, mas também de que forma um memorial como este vincula supostos “homenageados” numa narrativa histórica na qual, uma vez mais, não são tidos nem achados? Um memorial erguido aos “combatentes de Ultramar”, para além de omitir as vítimas continuadas da exploração e do racismo, compromete os seus homenageados com a missão que não escolheram. Trata-se de uma injustiça que penaliza os povos oprimidos e que amarra os peões dessa opressão numa história que lhes foi imposta. É importante que quando recordamos vítimas da história, seja qual for o seu estatuto e a sua fronteira, não vinculemos essas vítimas ao processo que as tornou vítimas. É importante que não as confrontemos uma vez mais com uma carta permanente de mobilização – não são combatentes, mas instrumentos da mão oportunista da ditadura colonial.

Diz-se com ironia e acerto que “o passado está sempre a mudar” – e a memória discute-se, debate-se, antes de se impor nas ruas da cidade como se fosse um monumento inamovível.

Em Portugal discute-se pouco. Discute-se pouco o que é importante discutir, discute-se pouco no espaço público e discute-se pouco o próprio espaço público. Quando a discussão desassombrada não abunda, as narrativas mais sinistras e os propósitos mais inconfessados irrompem da cortina de silêncio e monumentalizam os fantasmas mais incómodos da história coletiva. O surgimento em Portugal de forças políticas contrárias à Democracia e aos valores de Abril evidencia mais ainda como a memória e sua designação no espaço público não se limitam a questões de pormenor. Elas são urgentes!

É, então, importante que não nos limitemos, como faz o executivo da Câmara Municipal do Porto, a pôr pedras no assunto e a contornar a discussão. Importa não impor, em espaço público, o pensamento único de uma história que se debate e que se critica, mas que não se monumentaliza nem se glorifica.

Sobre o/a autor(a)

Professor do Ensino Superior Politécnico, ativista
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