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Enfermeiras e enfermeiros não vão em futebóis!

É preciso muita desfaçatez para atribuir a decisão da UEFA a um acto simbólico para premiar os profissionais de saúde que combatem os efeitos da covid-19, nos diversos níveis de prevenção.

É preciso muita desfaçatez para atribuir a decisão da UEFA a um voto de confiança ao trabalho desenvolvido na contenção da propagação do coronavírus ou a um acto simbólico para premiar os profissionais de saúde que combatem os efeitos da covid-19, nos diversos níveis de prevenção.

A realização da final da Liga dos Campões na cidade de Lisboa em nada beneficia as/os que diariamente prestam cuidados, nas mais indecorosas condições de trabalho e sem que o reconhecimento profissional tenha, de facto, lugar. E, já agora, mesmo como prémio seria amplamente desigual, já que não abrange a totalidade do país.

A realização da final da Liga dos Campões na cidade de Lisboa em nada beneficia as/os que diariamente prestam cuidados, nas mais indecorosas condições de trabalho e sem que o reconhecimento profissional tenha, de facto, lugar

No que à enfermagem diz respeito as reivindicações pré-pandemia permanecem intactas. Aliás, a própria crise sanitária veio agravar o sentimento de desprotecção, injustiça e desrespeito por parte da tutela. Se é certo que o reconhecimento social incrementou – veremos até quando, sabemos, bem, o quão cíclico costuma ser –, o mesmo não se verificou no que concerne à profissão em si. As posições remuneratórias não sofreram alterações, as carreiras continuam por desenvolver, a dotação de profissionais de saúde continua inferior às necessidades, a falta de material não foi resolvida, as rupturas de stock de equipamento de protecção individual são frequentes, as condições estruturais das instalações são, em tantos locais, indignas etc., etc., etc....

Em plena pandemia as e os profissionais de saúde apenas receberam risco acrescido. Ante a exposição a um novo agente, mais horas de trabalho, piores condições para o exercício profissional e a afronta da suspensão dos seus direitos laborais ditada pela decretação do Estado de Emergência. Recorde-se que o Estado de Emergência retirou os direitos de resistência e de greve, previstos na Constituição da República Portuguesa, sem que sequer, alguma vez, os profissionais de saúde ousassem pensar em tal exercer naquela situação. Registamos o acto musculado por parte da tutela. Os mesmos que hoje pretendem louvar o esforço desempenhado, sentido de estado e abnegação pessoal dos profissionais de saúde, são os mesmo que deliberaram a retirada preventiva de direitos, não fossemos, nós, da noite para o dia, tornarmo-nos irresponsáveis.

São inúmeros as/os enfermeiras/os especialistas que prestam, diariamente, cuidados especializados de enfermagem sem que tenham sequer sido integrados na respectiva carreira. É com elevada abnegação que são prestados os melhores cuidados às pessoas que deles carecem, pois é na procura da excelência que o desenvolvimento tem lugar. É com o objectivo de aprimorar a qualidade dos cuidados e melhor responder às necessidades das pessoas, famílias e comunidades que um/a enfermeiro/a decide investir na sua especialização. A imposição de numerus clausus para aceder à categoria de Enfermeiro Especialista traduz-se em injustiça flagrante ante a especificidade dos cuidados oferecidos.

As e os profissionais de saúde não precisam de prémios, muito menos desta índole. Precisamos, sim, da devida dignificação da profissão, conferindo uma carreira e salário consentâneos com as características do exercício de funções

E o que dizer da diferenciação entre enfermeiros em contratos de funções públicas e enfermeiros em contrato individual de trabalho? E a tábua rasa efectivada a quem presta cuidados há décadas, tendo sido destruída qualquer expectativa de chegada ao topo da carreira no decurso da sua vida profissional? Que meios de compensação da penosidade e risco foram determinados, quer os inerentes ao exercício de enfermagem em si, quer os referentes ao trabalho por turnos e trabalho nocturno? Quantas/os enfermeiras/os com mais de 50 anos continuarão obrigados a fazer noites? Que valorização dos graus académicos obtidos e sua articulação com a investigação e docência?

As e os profissionais de saúde não precisam de prémios, muito menos desta índole. Precisamos, sim, da devida dignificação da profissão, conferindo uma carreira e salário consentâneos com as características do exercício de funções.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeira na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Hospital de Santa Maria
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