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Uma farsa em três atos e mais uma a caminho

O SNS foi e é a resposta nacional do combate à Covid. Que ninguém se engane: não falta muito para o setor privado aparecer novamente a ‘oferecer ajuda’. Saibamos tirar lições da epidemia e saibamos não permitir que novas farsas se desenvolvam.

A epidemia que o país enfrenta obriga-nos a tirar lições. Sabemos agora, mais do que no passado, que é o SNS que nos protege e que do setor privado da saúde o país não pode esperar nada. Esta é uma crónica sobre esse setor. Sobre a farsa que representou durante a epidemia e sobre outra que prepara para levar à cena não tarda nada.

No dia 2 de março foram diagnosticados os dois primeiros casos de Covid-19 em Portugal. Enquanto o SNS já respondia à epidemia e continuava a preparar-se para um dos maiores desafios da sua história, tem início o primeiro ato da farsa que aqui se relata: o ato em que os grupos privados dizem estar dispostos a ajudar o SNS, incondicionalmente.

No dia 15 de março grupos económicos da área da saúde privada anunciam que vão reunir com a DGS para oferecer ajuda no combate ao novo coronavírus, narrativa que repetem no dia 24 de março em comunicado da APHP, onde fazem saber que “os hospitais privados estão disponíveis para, incondicionalmente, participarem no esforço nacional de combate a este vírus”. Ao mesmo tempo há hospitais privados a encerrar portas em plena aceleração da epidemia. Exemplos disso: o SAMS e o Trofa Saúde de Famalicão.

Menos de um mês depois começa o segundo ato: afinal a ajuda incondicional não é bem incondicional, é para ser paga.

Como explicam numa reportagem televisiva, a Covid seria a solução para cobrir a quebra nas receitas. A intenção é, afinal, cobrar ao SNS todos os doentes Covid, mesmo os que não fossem referenciados pelo SNS. Os seguros não se responsabilizariam pelos segurados, o orçamento do SNS cobriria a perda de receitas dos hospitais privados e, afinal, a ajuda incondicional tinha que ser devidamente faturada.

Derrotada a intenção de poder cobrar ao SNS o que bem entendessem, dá-se início ao terceiro e derradeiro ato: sem dinheiro não há ‘ajuda’.

O administrador da Lusíadas Saúde disse que, sendo assim, “os doentes que tiverem necessidade de serem internados serão encaminhados para o serviço público. Tratando-se de uma pandemia, o sector segurador não comparticipa o internamento”; a CUF informa que a partir de 15 de abril passará a cobrar aos utentes os atos de diagnóstico e tratamento relacionados com a Covid e a Luz Saúde, pela voz da sua CEO, Isabel Vaz, vem atacar o SNS. Diz que foi apanhado de ‘calções nas mãos’. É caso para perguntar: se foi assim, que dizer do setor privado e do seu grupo, Doutora Isabel Vaz?

O SNS foi e é a resposta nacional do combate à Covid. Tem agora de, ao mesmo tempo que mantém esse combate, recuperar as consultas e as cirurgias que foram suspensas.

Que ninguém se engane: não falta muito para o setor privado aparecer novamente a ‘oferecer ajuda’ ao SNS para ficar com essa atividade programada, uma ajuda que estarão dispostos a oferecer mediante um cheque adequado, já se sabe.

Saibamos tirar lições da epidemia e saibamos não permitir que novas farsas se desenvolvam. O que é preciso agora é reforçar o SNS para recuperar as listas de espera para consultas e cirurgias e para aumentar a resposta onde elas sempre foram mais frágeis, como nas áreas da saúde mental ou dos meios complementares de diagnóstico em ambulatório.

Ao SNS e aos seus profissionais, um sincero agradecimento. Ainda bem que enquanto sociedade conseguimos construir este fantástico edifício que garante o direito à saúde. E ainda bem que conseguimos resistir a tantas tentativas de o destruir. Saibamos agora estar à altura para fazer o que é imprescindível: valorizar as carreiras dos profissionais de saúde e investir no SNS sem reserva e sem olhar para a saúde como despesa.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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