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O mito verde do IVA da eletricidade

Numa altura em que, compreensivelmente, crescem as preocupações ambientais, o PS joga uma cartada populista para defender a linha dura de Centeno: ou flagelo da pobreza energética ou crise climática.

Num dos países com a eletricidade mais cara da Europa, onde se morre de frio porque uma grande parte da população não tem dinheiro para aquecer as casas, o IVA da eletricidade é uma questão humanitária. A subida para 23% deste imposto, colocando a eletricidade entre os bens de luxo, foi um ataque às famílias feito pela obsessão orçamental nos tempos da troika e que o Partido Socialista não teve até hoje coragem de reverter. Quando confrontado com a óbvia necessidade de reduzir este imposto, o PS decidiu fazer malabarismo e refugiar-se na “questão ambiental” para não fazer nada.

Segundo o PS, uma descida na fatura elétrica levaria a um crescimento do consumo de eletricidade que aumentaria as emissões de CO2 e poria em causa os objetivos ambientais do país. É com base neste argumento que o partido recusa a descida da fatura da luz a milhões de famílias. Porém, não justifica esta linha argumentativa, não mostra números nem apresenta estudos. Numa altura em que, compreensivelmente, crescem as preocupações ambientais, o PS joga uma cartada populista para defender a linha dura de Centeno: ou flagelo da pobreza energética ou crise climática. Colocar o debate nestes termos é perigoso, revela falta de imaginação política, mas acima de tudo é falso.

Vários estudos indicam que, principalmente no setor doméstico, o consumo de eletricidade é bastante inelástico1. Ou seja, ao contrário de outro tipo de consumos, não é por ser mais barata que passamos a consumir mais eletricidade. Ter o frigorífico ligado, cozinhar, tomar banho ou fazer uma máquina de roupa são coisas que fazemos porque precisamos e não porque a eletricidade é barata. Quando o IVA desce, o único aumento expectável é nos consumos de primeira necessidade, isto é, aqueles que se deixaram de fazer porque o dinheiro faltou, como ligar o aquecedor nos dias frios. Assim, a ideia de que uma descida do IVA implicaria um aumento descontrolado do consumo é um absurdo que não encontra fundamento em nenhum dado científico. Aliás, é precisamente essa caraterística inelástica do consumo elétrico que torna o IVA a 23% tão apetecível do ponto de vista orçamental. Isto é, como as quantidades não variam, torna-se uma receita previsível no orçamento de Estado, da qual Centeno não quer abrir mão. Mas fá-lo à custa da eletricidade mais cara da Europa e de milhares de famílias em risco de pobreza energética.

Em segundo lugar, mesmo que uma descida do IVA conduzisse a alterações nos comportamentos e a novos consumos, não é líquido que estes se traduzam num aumento das emissões. Pelo contrário, uma descida na fatura de eletricidade pode mesmo ajudar aos objetivos do Plano Nacional Energia e Clima (PNEC) português, que passam por uma transição energética baseada na eletrificação dos consumos2. Por exemplo, nos meios rurais em Portugal, está estudado que os consumidores trocam a biomassa pela eletricidade quando o preço da luz desce3. Da mesma forma, reduzir os custos de eletricidade para as famílias pode ser um incentivo à adoção do carro elétrico em detrimento do veículo a combustão. Portanto, a baixa do IVA pode ajudar a eletrificar alguns consumos e tornar mais fácil a transição para as renováveis, cumprindo a estratégia que o próprio PS definiu no PNEC. Não estivesse o PS cego com o orçamento de Centeno e teria aqui uma grande oportunidade para fazer política energética.

Por fim, ver o IVA como um imposto verde, que incentiva comportamentos amigos do ambiente, é uma ideia absurda. O IVA é um imposto cego que não tem em conta as emissões. Pagamos 23% a mais pela eletricidade quer esta seja produzida por renováveis ou carvão. O IVA da eletricidade não dá sinais de preço às famílias para mudarem os consumos para horários mais favoráveis ao ambiente nem torna o sistema mais eficiente. É apenas um peso na fatura que agrava o flagelo da pobreza energética em Portugal. Usar o argumento verde no debate sobre o IVA da eletricidade, para além de desonesto, é colocar o ónus da crise climática nas populações mais vulneráveis. No fundo, é abdicar de uma política energética de esquerda e de uma transição que não deixe ninguém para trás.


Notas:

1 C. Cialani, R. Mortazavi, “Household and industrial electricity demand in Europe”, Energy Policy, vol 122, 2018.

2 Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030).

3 S. Siva et. al. “Electricity residential demand elasticities: Urban versus rural areas in Portugal”, Energy, vol 144, 2018.

Sobre o/a autor(a)

Investigador em sistemas de energia no Laboratório Nacional de Berkeley, Califórnia.
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