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Quem protege os lançadores de alerta?

Os mensageiros são detidos e perseguidos, os criminosos de colarinho branco continuam à solta. É a escolha entre seguir quem denuncia os crimes ou os criminosos.

Dois anos após o assassinato de Daphne Caruana Galicia, a jornalista de investigação maltesa, ainda não está concluído o processo de investigação sobre o seu assassinato. Há evidências e associações a altos cargos do governo de Muscatt, mas ainda não caiu o governo e o primeiro-ministro diz que só se demitirá em janeiro. Caruana Galicia investigava crimes de fraude e evasão fiscal e esteve ligada aos Panama Papers. Ainda antes de integrarem o governo, o homem que viria a ser chefe de gabinete do primeiro-ministro e um dos homens que viria a ser ministro do seu governo foram apanhados através de formulários que provavam a transferência de grandes quantidades de dinheiro para paraísos fiscais. Até hoje, o que sabemos é que ela tinha razão e que o governo de Malta tem sido um empecilho a uma investigação transparente e independente. A família de Daphne continua a ser ameaçada, quem a defende continua a ser silenciado.

Pergunto-me muitas vezes: por que razão é tão difícil ter a opinião pública ao lado dos lançadores de alerta? Falamos de pessoas que tiveram a coragem de revelar esquemas que permitiram esconder milhares de milhões de euros e ilibar várias pessoas ou empresas de pagar as devidas contribuições fiscais. Falamos de dinheiro que falta às contas públicas e que promove ainda maior desigualdade fiscal. Parece que às grandes corporações tudo é permitido, a quem trabalha nada é perdoado.

Através dos lançadores de alerta, jornalistas e outras pessoas que, tendo acesso a informação de interesse público a revelaram, vamos acedendo a um mundo normalmente obscuro. Stéphanie Gibaud, Antoine Deltour e Édouard Perrin foram algumas destas corajosas pessoas que tive a oportunidade de conhecer. As suas vidas foram transformadas num autêntico inferno.

Em Portugal temos Rui Pinto. Julgado publicamente antes do julgamento, é acusado de 147 crimes. Paradoxalmente, nenhum dos escândalos revelados por Rui Pinto é alvo de processo de investigação em Portugal, ao contrário de outros países, como Espanha, onde os cofres públicos recuperaram já elevados montantes de dinheiro em contribuições fiscais. Todas as atenções se centram em Rui Pinto e nenhuma nos visados. Num país onde ainda persistem enormes desigualdades fiscais, onde o crime económico é quase sempre perdoado ou o seu julgamento adiado, Rui Pinto é o alvo. A verdade conta ou não? Independentemente das explicações que sejam devidas ou não por Rui Pinto, há dois pesos e duas medidas na justiça financeira em Portugal. Há escritórios de advogados especializados em proteger quem quer fugir ao fisco e há toda uma serenidade e subserviência face ao crime financeiro. Numa sociedade mais justa, estaríamos a olhar para a informação revelada e a investigá-la. Não estamos. Os mensageiros são detidos e perseguidos, os criminosos de colarinho branco continuam à solta. É a escolha entre seguir quem denuncia os crimes ou os criminosos. Queremos ou não proteger os lançadores de alerta? Queremos ou não uma democracia mais justa?

Texto publicado no Diário de Notícias em 21 de dezembro.

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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