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Incineração: irão aprender com os erros?
Saíram boas notícias dessa sentença, mas também dados que causam preocupação.
A primeira boa notícia é que o projeto não será adjudicado ao consórcio vencedor - CME e Steinmüller Babcock Environment - mas também não será adjudicado à outra empresa concorrente - Termomeccanica - que levou o processo a tribunal. O projeto não avança sem que, pelo menos, haja novo concurso.
Ninguém pode, no entanto, deixar de ficar preocupado com o que foi noticiado acerca do acórdão do tribunal: houve parcialidade, irregularidades e erros ostensivos do júri do concurso. Estamos a falar de um projeto de 67 ME, uma das maiores obras públicas nos Açores nos últimos anos. Tivemos um júri que foi parcial, que cometeu ilegalidades e errou ostensivamente. Fica a questão: por que motivos o júri agiu dessa forma?
Para além da avaliação política das decisões tomadas pela Associação de Municípios da Ilha de São Miguel (AMISM), dos autarcas que a compõem, assim como da atuação do Governo Regional - que não pode deixar de ser feita - é preciso olhar para o futuro da gestão de resíduos na ilha de São Miguel com seriedade, colocando finalmente o ambiente e o interesse público em primeiro lugar.
Para isso, é preciso esquecer de vez este projeto. Há muito que isso deveria ter sido feito, mesmo com processos judiciais a decorrer, porque os danos ambientais e os prejuízos financeiros que seriam causados por décadas de funcionamento de uma incineradora enormemente sobredimensionada seriam muitíssimo maiores do que qualquer problema criado pela anulação do concurso.
Mas tirado o problema judicial do caminho, não há desculpas. E ninguém desculpará a AMISM nem o Governo Regional se insistirem neste caminho.
Neste momento há uma proposta do Bloco de Esquerda na Assembleia Legislativa que recomenda ao Governo Regional que, na revisão do Plano Estratégico de Prevenção e Gestão de Resíduos dos Açores (PEPGRA) deixe de estar prevista a incineração em São Miguel e que articule com a AMISM soluções alternativas. Vejo com agrado que as palavras do presidente da AMISM em reação à decisão do tribunal sejam um claro acolhimento dessa proposta do Bloco de Esquerda.
Mas é preciso passar das palavras aos atos e rapidamente!
É inaceitável que a AMISM insista na construção de uma incineradora que tem capacidade para incinerar a quase totalidade dos resíduos urbanos produzidos em São Miguel. Não é possível sequer sonharmos em cumprir as metas de reciclagem nos Açores com a construção de mais uma incineradora, ainda para mais com esta dimensão. Se isso acontecer, mais vale incinerar também o Plano Regional para as Alterações Climáticas, porque de nada vale com decisões destas.
A responsabilidade está agora nas mãos dos presidentes de Câmara da ilha de São Miguel mas também nas mãos de Vasco Cordeiro, presidente do Governo. Sim, a responsabilidade é também do Governo Regional que sempre deu cobertura à decisão da AMISM, fosse pelo PEPGRA fosse demitindo-se das suas responsabilidades. Com uma palavra acerca da revisão do PEPGRA, Vasco Cordeiro pode parar este projeto.
O Bloco de Esquerda está onde sempre esteve, do lado do ambiente e do interesse público.
Comentários
Independentemente de
Independentemente de considerações filosófico-ideológicas («queimar lixo só encoraja as pessoas a produzirem mais lixo») qual seria, então, a melhor solução para a Ilha de S. Miguel?
A questão da incineração vs. aterros sanitários é complexa (há benefícios em ambas as soluções — por exemplo, ver greengarageblog.org/8-pros-and-cons-of-incineration — mas há óbvias desvantagens em ambos os casos), mas pelo menos deveríamos ter alguns pontos em consideração, numa perspectiva realista (e não fantasista), não esquecendo também que S. Miguel é uma ilha:
- No futuro, com mudanças de comportamento, é possível que se gere menos lixo; mas estas mudanças de comportamento levam tempo e várias gerações; entretanto, temos de lidar com o lixo todo. Quando deixar de haver espaço nos aterros sanitários em S. Miguel, esse lixo tem de ser enviado para fora do arquipélago — com os respectivos custos de transporte e impacto ambiental dos navios carregados de lixo — onde acabará por ir parar a *outros* aterros sanitários e/ou incinerado. Do ponto de vista ambiental, pois, faz mais sentido tratar do lixo localmente; mas, tendo em conta que S. Miguel não tem espaço infinito para aterros sanitários, onde colocar localmente o lixo então? Nota: se se pegassem nos tais 67 M€ para os colocar em informação ao público sobre reciclagem, não se iria, a curto prazo, reduzir o lixo significativamente (comparado com uma solução que elimine, de facto, esse lixo).
- Reciclar eficazmente plástico (e outros tipos de lixo) requer não só energia como também uma grande quantidade de infraestrutura; não é expectável, num futuro próximo, que hajam condições económicas para criar fábricas de reciclagem em S. Miguel, que reaproveitem *todos* os tipos de lixo e os transformem em novos materiais. Tal projecto até poderia ser viável (geração de postos de trabalho nas respectivas instalações; incentivo a empresas que usem os materiais reciclados noutros produtos para se estabelecerem junto ao «parque de reciclagem industrial»; etc.) mas esbarra sempre com o mesmo problema: os custos de atravessar o Atlântico (a não ser que sejam subsidiados) vão sempre tornar tal projecto demasiado caro, comparado com outras soluções existentes no continente (não necessariamente só em Portugal, claro está — será sempre mais barato enviar lixo de Lisboa para Espanha do que de Lisboa para Ponta Delgada, a título de exemplo).
- Os aterros sanitários fixam carbono (o que é excelente) mas a sua tecnologia não mudou muito nos últimos séculos, talvez com a excepção de uma melhor preparação do local para impedir a infiltração de partículas tóxicas no subsolo e nos aquíferos; de resto, basicamente continua-se simplesmente a atirar o lixo para um sítio que ninguém veja. Em contraste, a tecnologia da co-incineração tem evoluído drasticamente nas últimas décadas; o maior impacto ambiental que era causado pela poluição por partículas altamente tóxicas lançadas sob forma de fumo foi praticamente eliminado nas centrais de co-incineração modernas: aquilo que era tecnicamente «fumo poluidor» é recapturado e re-utilizado para mais uma iteração de incineração, etc., até só restarem cinzas inertes (utilizáveis para cimento e, nalguns casos, fertilizantes); durante esse processo está-se sempre a produzir energia. Embora o custo de construção de uma moderna central de co-incineração seja astronómico (comparado com outras soluções), assim como os custos de manutenção, o certo é que está-se a criar novos postos de trabalho altamente qualificados e a produzir matéria-prima para materiais de construção, metais pesados (que em vez de ficarem a contaminar o sub-solo podem ser vendidos), e, claro, produção de energia eléctrica. Mais uma vez: as modernas centrais de co-incineração são praticamente auto-suficientes em termos energéticos (a energia que produzem acaba por ser mais do que a que é necessária para queimar o lixo produzido) — é certo que existem métodos melhores, mais baratos e mais eficazes de produzir energia eléctrica, mas a co-incineração resolve dois problemas: acaba com o lixo e produz energia como «sub-produto» desse processo, com impacto ambiental negligível (nas centrais modernas, bem entendido!). E permite igualmente queimar o lixo todo existente em aterros sanitários, mesmo os contaminados, fazendo com que esses espaços possam ser tornados em parques naturais (devido à contaminação do solo, não podem ser usados para agricultura, construção de habitação, ou indústria — mas plantando árvores criam-se espaços naturais em que, aos poucos, a própria vegetação acaba por limpar o solo ao longo de décadas, sem custos adicionais para além dos iniciais de transporte do lixo e planeamento do parque natural, bem entendido)
- A solução de co-incineração é particularmente útil em regiões isoladas onde o custo de transportar lixo é elevado, assim como o custo de transportar combustível (seja de que forma for) para produção de energia. É certo que em muitas regiões dos Açores se podem obter energias renováveis — desde a força do oceano, ao vento e sol, e a energia geotérmica — mas acaba sempre por ser necessário «compensar» os períodos em que as energias renováveis não estão disponíveis (dias sem vento, sem sol, com o mar calmo, etc.). O armazenamento de energia para os períodos em que não há energia proveniente de renováveis é problemático: neste momento podemos armazená-la em grandes barragens (transformando energia eléctrica em cinética/gravítica e vice-versa) ou em enormes parques de baterias (cujos componentes, como o lítio, infelizmente não são lá muito amigos do ambiente...). O que isto significa é que uma política energética baseada em renováveis tem que ser igualmente responsável e pensar nas limitações naturais que existem — as que existem hoje, não as soluções que teremos no futuro (ex. baterias que não usem lítio, por exemplo) — e isto implica, para já, o fornecimento de energia à rede de forma constante. Ora uma co-incineradora pode ser essa fonte de energia, permitindo desligar todas as restantes formas de produção energética em S. Miguel que recorram a combustíveis fósseis, resolvendo, pois, dois problemas «temporários» (o tratamento do lixo enquanto os hábitos dos consumidores não mudam; a produção de energia eléctrica enquanto não é desenvolvida uma forma de produção 100% renovável e 100% disponível para 100% das necessidades dos habitantes).
As centrais de co-incineração não são o «bicho-papão» anti-ecológico que a comunicação social gosta tanto de divulgar. Como todas as tecnologias, têm vantagens e desvantagens. Devem ser pensadas numa estratégia de «transição» de uma sociedade assente em combustíveis fósseis e desperdícios não recicláveis (pelo menos não recicláveis em todas as partes do mundo) para uma sociedade assente em energia eléctrica produzida sem qualquer impacto ambiental (e, de preferência, de forma gratuita, aproveitando as energias renováveis) que não cria desperdícios (tudo é reciclado e/ou reaproveitado a nível doméstico). Estamos, aos poucos, a sair do primeiro tipo de sociedade — pelo menos temos *consciência* de que temos de abandonar essa forma de construção das nossas sociedades, e fazê-lo imediatamente, sem mais demoras — mas ainda não chegámos ao estágio final do tipo de sociedade e civilização com impacto ambiental nulo. Na transição de um tipo para o outro vamos precisar de «muletas», isto é, soluções que devem ser encaradas como temporárias para resolver os problemas gerados pela sociedade «poluente» enquanto não tempos uma sociedade «limpa». Para ir de A para B precisamos de passar por todos os pontos intermédios, e isso significa adoptar, em cada momento do tempo, as soluções que sejam melhores para nos avançar em direcção a B.
Com certeza que a co-incineração nunca deve ser vista como uma solução «definitiva». Uma central de co-incineração tem alegadamente um tempo de vida de 30 ou 40 anos. Será mais que suficiente — espero eu! — para a mudança de comportamentos necessária à sociedade. E ao final desse período a central de co-incineração pode pura e simplesmente ser demolida e o seu espaço reaproveitado (pelo menos os solos não estarão contaminados, como nos aterros sanitários).
Agora negar aos habitantes de S. Miguel uma solução «temporária» — mas eficaz enquanto temporária! — esperando que assim todos eles «subitamente», do dia para a noite, se tornem em cidadãos ambientalmente responsáveis e que deixem de gerar lixo ou passem a produzir toda a energia eléctrica por si próprios... bem, sejamos sinceros, isso é pura e simplesmente uma utopia, ou, pior, um fruto de imaginação prodigiosa. Nem a mais violenta das revoluções produz resultados instantâneos e imediatos; a história mostra-nos que há sempre «inércia», dependendo, obviamente, do nível de violência e opressão imposto às pessoas. Podemos mudar comportamentos, sim, mas numa sociedade democrática e livre, isso leva tempo; entretanto, cabe aos nossos políticos manterem sempre presente o destino para o qual querem progredir com a nossa sociedade e assegurar não só que esse destino é alcançado, mas que, para lá chegar, existam os meios necessários à «transição».
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