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Análise às legislativas e ao novo ciclo político (2)

Na segunda parte da sua análise detalhada aos resultados eleitorais das passadas eleições legislativas, Jorge Martins dedica-se aos números dos partidos com menos expressão eleitoral e ao aumento “preocupante” da abstenção.
Eleições legislativas de 6 de outubro de 2019.
Eleições legislativas de 6 de outubro de 2019. Foto de Rodrigo Antunes/Lusa.

Vamos, agora, continuar a nossa análise, reportando-nos às forças políticas de menor dimensão, em especial as que saíram claramente vencedoras do ato eleitoral: o PAN e os três novos partidos parlamentares.

 

PAN: a confirmação do crescimento, mas de forma moderada

O PAN foi outro grande vencedor da noite eleitoral, ao obter 3,3% dos votos e quatro lugares no Parlamento, o que lhe permite passar a ter um grupo parlamentar. Há quatro anos, conseguira 1,4%, o que lhe valeu, então, a eleição solitária de André Silva, pelo círculo de Lisboa. Agora, conseguiu mais três lugares: um segundo na capital, outro no Porto e o restante em Setúbal. Contudo, ficou um pouco abaixo das sondagens mais otimistas.

Para além de manter à volta de 75% dos seus votantes de 2015, conquistou 2% dos novos eleitores, para além de 6% vindos do BE. Foi, ainda, buscar 4% a brancos e nulos, 3% a partidos extraparlamentares, cerca de 0,5% ao PS, outro tanto à PàF, à volta de 0,3% à abstenção, mais 2,5% ao L/TDA e alguns à CDU.

Ao invés, apenas registou perdas com algum relevo para o PS (cerca de 7%) e a abstenção (6%), já que, face à escassa percentagem obtida, os que saíram para outras opções de voto têm pouco significado estatístico.

O seu melhor resultado ocorreu, de forma talvez um pouco inesperada, no círculo da emigração da Europa (4,9%). Seguiram-se Faro (4,8%), o círculo dos emigrantes de Fora da Europa (4,7%) e nos dois distritos onde se inclui a região metropolitana da capital: Lisboa e Setúbal (4,4% em ambos). Ainda acima da média nacional, vem o Porto (3,5%). Para além dos eleitores da diáspora, os distritos onde consegue maior adesão possuem forte grau de urbanização, onde existe uma faixa apreciável de eleitorado jovem.

Ao invés, os resultados menos bons ocorreram nas áreas mais envelhecidas do interior, com destaque para Bragança (1,3%), Guarda e Vila Real (1,6% nas duas) e Portalegre (1,7%).

Ao nível concelhio, os melhores desempenhos ocorreram no Algarve, com a percentagem mais elevada a ser protagonizada em Albufeira (5,5%), seguida de Portimão e Olhão (5,4%), Aljezur (5,3%), Lagoa (5,2%), Faro (5,1%) e Lagos (5,0%). Na área metropolitana de Lisboa, Sintra (5,1%) foi o seu maior “score” percentual, mas nos restantes concelhos desta ficou sempre entre os 4,0% e os 5,0%. Também entre 4,0% e 4,5% no Porto e nos municípios vizinhos.

O seu crescimento verificou-se em todo o território nacional. A maior subida registou-se, tal como nas europeias, em Braga, onde mais que triplicou a sua votação de há quatro anos (+230%). Seguiram-se, também com mais do triplo das percentagens de então, o círculo de Fora da Europa (+214%), Viseu (+213%), Aveiro (+204%) e Açores (+200%). Ou seja, se é certo que as novidades “pegam” mais cedo e mais facilmente no Sul, acabam por se expandir para as áreas urbanas do Norte e Centro.

Ao invés, o menor acréscimo verificou-se, tal como no caso do BE, na Madeira (apenas +3,1%), onde o seu núcleo regional sofreu algumas divergências internas, a que se junta o já mencionado “efeito Cafofo”. Tal como tinha sucedido nas europeias, o segundo menor crescimento ocorreu no distrito da Guarda, onde não conseguiu duplicar a sua votação de há quatro anos (+88%). Portalegre (+111%), Porto e Santarém (ambos com +117%) foram outros onde a subida foi menor.

Este crescimento do PAN tem a sua raiz na inesperada eleição de um deputado pelo círculo de Lisboa nas últimas legislativas, já que o acesso à representação parlamentar lhe permitiu um maior acesso aos “media”, saindo da tradicional obscuridade a que são remetidas as forças políticas extraparlamentares. André Silva foi um bom deputado e aproveitou a oportunidade que a sua inesperada eleição lhe deu de afirmar o partido e colocar na ordem do dia grande parte da sua agenda, em especial no que se refere aos direitos dos animais, de que são exemplo a criminalização da violência exercida sobre aqueles, a luta pela abolição das touradas ou a reivindicação de deduções fiscais às consultas veterinárias. A essas, há a acrescentar outras propostas de cariz ambientalista, para além de uma atitude bastante liberal em matéria de costumes.

Acresce, ainda, a emergência da questão climática, que encontrou grande eco mediático após o apelo da jovem sueca Greta Thunberg, com as consequentes greves climáticas estudantis. Dadas as posições ecologistas do partido, este acabou por atrair uma parte significativa do voto jovem e urbano de vários setores das classes médias, tendo o seu apelo encontrado especial eco no eleitorado feminino.

Porém, o líder animalista não realizou uma boa campanha, mostrando algumas vulnerabilidades do partido em matérias que saem da sua “zona de conforto”, como os temas económicos e sociais, onde revelou grande ambiguidade e falta de clareza ideológica. Não será por acaso que o PAN recusa definir-se no espectro esquerda-direita. Mesmo na questão dos animais, algumas das suas propostas pecaram por um certo radicalismo, o que terá afastado eleitores. Daí que o seu resultado, embora bom, tenha ficado abaixo do que certos estudos de opinião perspetivavam.

Em todo o caso, o partido conquistou um grupo parlamentar, em que, a André Silva, se juntam três deputadas, pelo que o partido tem condições para ter uma intervenção mais ativa e mediatizada em defesa das suas propostas. Porém, e como já se viu durante a campanha eleitoral, essa mediatização também o torna mais escrutável, o que poderá fazer vir à tona algumas das suas vulnerabilidades e “zonas de sombra”.

O grande desafio, agora, é passar de uma formação essencialmente animalista para um verdadeiro partido ecologista, semelhante aos Verdes que existem noutros países europeus. Contudo, e como se viu durante a campanha eleitoral, tal poderá não ser tão fácil como à primeira vista possa parecer, apesar de esse ser o caminho pretendido pelos seus dirigentes. Como referimos após as europeias, o crescimento pode fazer surgir ambições pessoais e desejos de protagonismo difíceis de gerir e acentuar algumas divergências internas, em especial face à definição ideológica da formação.

Ao não fazer maioria aritmética com o PS, o PAN fica mais livre para atuar, sem estar amarrado a um eventual acordo que fosse essencial para assegurar a maioria parlamentar ao governo de António Costa. Assim, se não se “espalhar” pelo caminho, pode continuar a ser, pelo menos até às próximas legislativas, um dos repositórios do voto de protesto.

Os novos partidos parlamentares

Um dos resultados mais relevantes destas eleições foi o acesso à representação parlamentar de três novas formações políticas, que aproveitaram a maior magnitude do círculo de Lisboa e a maior abertura do eleitorado lisboeta às novidades políticas para eleger, cada uma delas, um deputado.

Embora de natureza ideológica diferente (um da extrema-direita, outro ultraliberal e um terceiro da esquerda verde), todos eles beneficiaram de algum cansaço dos eleitores com os partidos tradicionais. Além disso, a profunda crise da direita e o facto de PCP e BE, por virtude dos acordos da “geringonça”, terem perdido parte do seu potencial como partidos de protesto, levou ao aumento do voto no PAN, no Livre e em forças políticas novas.

No fundo, apesar da resiliência do nosso sistema partidário, a verdade é que ele sofre, embora em menor grau, as pressões desintegradoras que afetam os de outros países europeus.

Chega: a extrema-direita chegou ao Parlamento

O grande choque da noite eleitoral foi a eleição de André Ventura, líder do Chega, formação da nova extrema-direita populista, que obteve 1,3% dos sufrágios.

Se, para muitos, tal era impensável, a verdade é que o resultado da coligação Basta! (que o Chega integrou, junto com o PPM e o CDC/PPV) mostrava que era possível ao seu líder e fundador chegar ao Parlamento.

Tal como sucedeu nas europeias, os seus melhores resultados ocorreram no Alentejo e no Ribatejo, com 2,7% em Portalegre e 2,2% em Évora, ficando com 2,0% em Beja e em Santarém. Algo que mostra que o discurso ciganofóbico do partido rendeu votos nessas regiões, sendo que, no caso alentejano, se regista, igualmente, uma vaga recente de imigração asiática (e não só), embora esta pareça, para já, pouco relevante para explicar aquela votação. Também o aumento da abstenção, em especial da parte do eleitorado do PCP, terá tido o efeito estatístico de insuflar os seus resultados. Já os bons desempenhos em Faro (2,1%), Lisboa (2,0%) e Setúbal (1,9%), áreas mais urbanizadas e com maiores índices de imigração, eram mais ou menos esperados. Ainda ficou ligeiramente acima da média nacional em Leiria e na Guarda (1,5% em ambos) e em Castelo Branco (1,3%).

Ao nível municipal, obteve o melhor resultado nacional no concelho do Alvito (4,8%), seguido de Moura (4,7%), ambos no distrito de Beja, Monforte (4,6%) e Elvas (4,5%), no de Portalegre, Vila do Bispo (4,4%), no de Faro, e Mourão (4,2%), no de Évora.

Em Lisboa, os seus melhores desempenhos ocorreram nos concelhos suburbanos situados a norte da capital. O “score” mais elevado foi obtido em Loures, onde Ventura foi candidato autárquico, com 2,9%, seguido de Odivelas, Sintra e Vila Franca de Xira (todos com 2,8%), Mafra (2,3%) e Amadora (2,2%). Já em Lisboa (1,4%), Oeiras (1,5%) e Cascais (1,7%) suscitou menor adesão.

Aliás, se descermos ao nível das freguesias, confirmamos que estamos em presença de um eleitorado essencialmente suburbano, de classe média-baixa, pouco culto e pouco esclarecido, residente em áreas onde existe maior presença de minorias étnicas e imigrantes.

Destaque especial para os resultados obtidos em duas freguesias alentejanas: Póvoa de São Miguel (Moura), onde atingiu os 15,4%, tendo sido a terceira força política mais votada, e São Vivente e Ventosa (Elvas), onde ficou em segundo lugar, com 11,9%. De referir, ainda, os 7,0% obtidos na de Sagres (Vila do Bispo) e os 5,9% na do Alvito.

Ao invés, revelou-se bastante mais débil no restante Litoral Centro e no Norte, bem como na emigração, não tendo chegado aos 1,0% em nenhum dos círculos dessas áreas. Tal como nas europeias, registou o valor percentual mais baixo no Porto (0,6%), algo que poderá dever-se ao ferrenho benfiquismo de Ventura, cuja notoriedade vem, exatamente, da sua participação como representante do seu clube num programa desportivo da CMTV.

Os seus votos tiveram as seguintes proveniências: 1,0% da PàF (a maior “fatia”), 5% de partidos extraparlamentares (especialmente, do PNR, mas também do PDR), 3% de brancos e nulos, 0,2% da abstenção, 0,3% de novos eleitores e valores residuais de outras opções de voto.

Com a chegada do Chega ao Parlamento, Portugal deixa de ser um dos países da Europa onde a extrema-direita não tem representação parlamentar. Se, para muitos, tal constituiu um choque, a nós não nos surpreende. Basta ler as caixas de comentários de alguns jornais e ouvir algumas intervenções nos fóruns radiofónicos ou o que se diz nas ruas e nos cafés ou, mesmo, o discurso de alguns agentes policiais para se perceber que existia um mercado eleitoral para esse tipo de ideologia. Apenas lhe faltava um líder com algum carisma, algo que dificultou a afirmação do PNR. Só a persistência do mito lusotropicalista levava muitos a pensar que o nosso país era imune ao “vírus”.

Apesar de ter sido, até há pouco, militante do PSD e seu candidato autárquico em Loures, manifestando, então, o seu apoio a Passos Coelho e às suas políticas de austeridade, Ventura agarrou a oportunidade. Após ter produzido umas declarações ciganofóbicas durante a campanha autárquica, que se juntam a anteriores de teor islamofóbico, contra a imigração e os refugiados, ganhou notoriedade política, que juntou à que já tinha como comentador desportivo.

Ao contrário do PNR, cuja estética e ideário são, assumidamente, da extrema-direita nacionalista, na linha do RN de Marine Le Pen, o Chega apresenta-se de forma mais “soft”, como conservador nos costumes, manifestando a sua oposição à chamada “ideologia de género” (o que levou o CDC/PPV, pequeno partido fundamentalista católico, ligado à Opus Dei, a integrar as suas listas), nacionalista, anti-imigração e contra o que considera ser o “excesso de tolerância da sociedade com os ciganos”, para além de cavalgar, igualmente, o discurso anticorrupção. Já na economia, é liberal, o que mostra a falsidade do seu discurso antissistema. Estamos, assim, perante uma formação da extrema-direita populista e reacionária, na linha do Vox espanhol.

No Parlamento, André Ventura terá o palco que lhe faltava e irá, provavelmente, multiplicar as provocações e os discursos “politicamente incorretos” para criar incidentes e polémicas, de forma a ser notícia. No fundo, o que lhe interessa é que falem dele, pouco importando se bem ou mal. Por isso, a esquerda e as forças democráticas em geral devem evitar cair na armadilha. Infelizmente, desde o dia da eleição até agora, alguns têm-se deixado arrastar pela estratégia do líder do Chega, não percebendo que, ao dar-lhe resposta, levam a que este seja notícia. O que ele, obviamente, agradece!

Iniciativa Liberal: uma nova cara da direita urbana?

A outra formação estreante no Parlamento será a Iniciativa Liberal (IL), que obteve, igualmente 1,3% dos votos (no total, teve apenas menos 145 que o Chega) e elegeu o seu cabeça de lista por Lisboa, o empresário João Cotrim de Figueiredo.

O partido registou o seu melhor resultado em Lisboa e no círculo da emigração de Fora da Europa, atingindo em ambos os 2,5% dos sufrágios. Seguiu-se o Porto, onde o seu líder, Carlos Guimarães Pinto, era candidato, com 1,5%. Nos restantes, ficou abaixo da média nacional, com Setúbal e Aveiro (1,0% nos dois) e Leiria (0,9%) a serem aqueles que mais se aproximaram desse valor.

Ao invés, os piores ocorreram no interior do país: Beja, Bragança e Vila Real (todos com 0,4%), Portalegre e Viseu (os dois com 0,5%), Guarda, Castelo Branco e Viana do Castelo (0,6% nos três).

Os seus votantes provêm de 1% da PàF (a maior porção do seu eleitorado), 0,5% de novos eleitores, 0,3% da abstenção, 0,5% de brancos e nulos, 1% do BE, 0,5% do PS e valores residuais de outras forças políticas.

Ao nível concelhio, Lisboa foi, claramente, o seu melhor resultado nacional, tendo atingido 4,1% dos votos. Seguiram-se, no distrito, Oeiras (3,2%) e Cascais (3,1%). Nos concelhos suburbanos a norte da capital, a sua votação já é mais baixa: Mafra (1,8%), Loures (1,7%), Odivelas e Sintra (1,6% em ambos), Amadora (1,4%) e Vila Franca de Xira (1,3%). Ou seja, a distribuição territorial do seu voto é praticamente a inversa do Chega.

No círculo do Porto, obteve 2,8% na cidade, 2,1% na Maia, 2,0% em Matosinhos e 1,8% em Vila Nova de Gaia. Nos restantes municípios, ficou na média nacional ou abaixo.

Se descermos ao nível das freguesias, verificamos que a sua votação é mais alta naquelas onde vive a população de maiores rendimentos. Em Lisboa, atinge 6,9% na da Estrela, onde se situa a Lapa, seguida das Avenidas Novas (6,5%), Santo António (6,3%), Belém (6,1%), Parque das Nações (5,8%), Campo de Ourique (5,4%), Lumiar (5,2%) e Alvalade (5,0%). No Porto, chega aos 4,9% na de Nevogilde, Aldoar e Foz do Douro e os resultados são claramente melhores na zona ocidental que na oriental.

Estamos, assim, em presença de um voto urbano, jovem e de classe alta ou média-alta, com destaque para alguns empresários, gestores e profissionais liberais.

A IL é uma formação de centro-direita, ultraliberal em matéria económica, expressa na defensa de um Estado mínimo, com redução do número de funcionários públicos, e da “liberdade de escolha” entre público e privado na educação e na saúde, mas tolerante em matéria de costumes, sendo favorável à legalização da eutanásia, da prostituição e da canábis. Contudo, embora se manifeste contra todas as formas de discriminação, também recusa a discriminação positiva em favor dos grupos minoritários e socialmente discriminados.

O futuro do partido estará muito dependente da forma como se reconfigurar a direita portuguesa, em especial do resultado da luta pelo poder no seio do PSD e, em menor grau, do CDS. Se Rio for reeleito presidente dos “laranjas”, a IL poderá continuar o seu caminho de forma autónoma. Se os “passistas” voltarem ao poder e o partido tornar a guinar à direita, é natural que aumentem as pressões sobre os liberais para a sua inclusão no “novo” PSD. Também o facto de o liberalismo económico não ter grande tradição em Portugal, mesmo à direita, pode constituir um obstáculo para o projeto. Até porque sabemos que os nossos liberais, à primeira dificuldade, recorrem ao Estado…

Livre: o “efeito Joacine”

Com 1,1% dos votos a nível nacional, o Livre registou uma subida face aos 0,7% de 2015, quando concorreu aliado a um movimento constituído por vários elementos da elite intelectual e mediática do país, entretanto extinto, denominado Tempo de Avançar.

Ironicamente, agora, sem grandes “craques”, conseguiu o seu objetivo. Foi também a primeira vez que Rui Tavares não foi candidato, mas apenas mandatário da lista por Lisboa.

O êxito do partido deve-se à sua cabeça de lista no círculo da capital, Joacine Katar Moreira, uma conhecida ativista dos direitos dos portugueses afrodescendentes e da população negra residente em Portugal. A candidata, cuja popularidade aumentou após a sua ida ao programa televisivo de Ricardo Araújo Pereira, viu a sua acentuada gaguez transformar-se num lamentável objeto de polémica. A forma como foi tratada por alguns setores da nossa sociedade, tendo aquela como pretexto, a par de insinuações torpes de que, por ter nascido em Bissau, tinha entrado ilegalmente no país e não tinha a nacionalidade portuguesa, mostra que a candidatura de uma mulher negra a um lugar parlamentar incomoda muita gente. E que ainda temos um longo caminho a percorrer na descolonização das mentalidades!

Não surpreende, assim, que, do ponto de vista territorial, seja no distrito de Lisboa que apresenta um resultado (2,1%), claramente acima da média nacional. Vêm a seguir Setúbal (1,2%), o círculo da emigração na Europa (1,1%) e, já abaixo daquele valor de referência, Faro e Porto (1,0% em ambos).

Ao nível municipal, Lisboa foi, como era previsível, o concelho onde teve o melhor desempenho, com 3,3% dos votos, logo seguido de Oeiras (2,5%). Depois, seguem-se Cascais (1,8%), Amadora (1,7%), Sintra, Vila Franca de Xira e Porto (1,6% em todos), Mafra e Almada (1,5% nos dois), Odivelas, Loures e Palmela (os três com 1,4%).

Se olharmos para as freguesias da capital, é em Arroios, onde atinge 6,1%, que consegue o melhor resultado. Vêm a seguir Santo António (5,6%), S. Vicente (5,4%), Misericórdia (5,2%), Santa Maria Maior (4,5%), Penha de França (4,1%) e Areeiro (4,0%).

Ou seja, corresponde a um eleitorado jovem e urbano, de classe média, culto e informado, por vezes associado a formas de vida alternativas, algo que explica a boa adesão que obteve nos bairros típicos, em especial na zona da Baixa-Chiado, Bairro Alto, Príncipe Real, Alfama, Mouraria e nos eixos da Almirante Reis e da Alameda.

Curiosamente, e ao contrário do que a candidatura de Joacine Katar Moreira faria supor, o apoio das comunidades racializadas ao Livre foi menos nítido, embora se note em algumas freguesias da capital e de alguns concelhos suburbanos, mas de forma bastante moderada. Porém, para além de o BE ter apresentado Beatriz Gomes Dias, outra afrodescendente, em terceiro lugar na lista pelo distrito, essas comunidades não são homogéneas e nem todos os seus elementos serão, necessariamente, progressistas. Além de que muitos não votam, ou porque não acreditam na eficácia do seu voto ou porque desconfiam das instituições ou, mesmo, porque, lamentavelmente, alguns não têm acesso à nacionalidade portuguesa, apesar de terem nascido em território nacional.

Por seu turno, os seus desempenhos mais fracos ocorrem, sem surpresa, na Madeira (0,4%) e, ainda, no Interior Norte: Bragança (igualmente 0,4%), Guarda, Viseu e Vila Real (0,5% nos três).

O Livre é uma formação da esquerda ecologista e defensora do federalismo europeu. Ocupa, no entanto, um espaço político relativamente reduzido, entre o BE, à sua esquerda, e o PS, à sua direita, sendo que o próprio PAN disputa, igualmente, o seu eleitorado.

Desta vez, funcionou o “efeito Joacine”. Do desempenho parlamentar da sua candidata e da evolução do quadro político nos próximos anos dependerá a afirmação do partido. Este poderá, no entanto, ser penalizado pelo “voto útil”, caso exista uma disputa mais apertada pela vitória eleitoral entre PS e PSD. Para já, o Livre, que sempre defendeu uma aliança entre os socialistas e as forças à sua esquerda, não aceitou agora assinar um acordo “de papel passado” com aqueles, o que se entende, de forma a ficar à vontade para definir as suas posições, embora tenha manifestado vontade de cooperar com todas as forças de esquerda na legislatura que agora se inicia.

Os pequenos partidos: mais, mas com menos votos

Estas eleições trouxeram, igualmente, um recorde de listas partidárias, que atingiram as 21 (20 partidos e a coligação CDU, entre PCP e PEV), embora raros tenham sido os círculos eleitorais em que todas concorreram.

Salvo o caso da Aliança e do RIR, que apareceram no decurso desta legislatura, os restantes registaram descidas face às últimas eleições, onde o seu desempenho já não havia sido famoso.

A Aliança, formada e liderada por Pedro Santana Lopes, após a sua saída do PSD, foi a grande deceção entre os novos partidos. Após ter sido o mais votado dos “pequenos” nas europeias, não foi agora além de 0,8% dos votos, ficando, assim, fora da representação parlamentar.

Ao contrário do que acontecia quando era militante do PSD, Santana Lopes não teve palco mediático, à exceção do debate entre os partidos extraparlamentares. Neste, o ex-primeiro ministro até nem deixou os seus créditos por mãos alheias, mas a sua prestação acabou por se revelar insuficiente para ser eleito.

Se ainda goza de alguma popularidade no concelho da Figueira da Foz, a cuja autarquia municipal presidiu, bem como em alguns setores da burguesia lisboeta e da linha de Cascais, a verdade é que para a maioria dos eleitores mais cultos e esclarecidos é considerado pouco credível. Além de ter de se defrontar com o problema recorrentes dos dissidentes: ainda é associado por muitos eleitores menos informados ao seu antigo partido.

Até ao início da campanha, as péssimas prestações de Rui Rio deram esperanças à Aliança de poder eleger, inclusivamente, um pequeno grupo parlamentar, beneficiando da fuga de votantes “laranjas”. Porém, como Rui Rio realizou uma campanha razoável, parte desses eleitores voltaram para o PSD e deixaram Santana a braços com mais um “flop”.

Já o MRPP, que não foi além de 0,7% dos sufrágios, quando, em 2015, havia obtido 1,1%, mostrou estar em queda, depois da expulsão de Garcia Pereira, após aquelas eleições, e da morte de Arnaldo Matos, no início deste ano.

Por sua vez, o RIR (Reagir – Incluir – Reciclar), partido unipessoal fundado e liderado pelo ex-candidato presidencial Vitorino Silva, popularmente conhecido por Tino de Rans, obteve os mesmos 0,7%, embora com menos 759 votos.

Mais para trás, ficou o PNR, que não foi além de 0,3% dos sufrágios, quando, há quatro anos, havia obtido 0,5%. O aparecimento do Chega levou alguns eleitores da extrema-direita a trocar os nacionalistas pelo partido de André Ventura, que viam como mais possibilidades de obter representação parlamentar.

O MPT, após uma disputa interna que o levou, inclusivamente, a ser confrontado com uma situação de possível insolvência e a não participar nas europeias, também perdeu votos, tendo-se ficado pelos 0,2%, contra os 0,4% de 2015.

O Nós, Cidadãos, que, ao contrário das europeias, onde apresentou como cabeça de lista o ex-candidato presidencial independente Paulo de Morais, não concorreu com nenhuma figura mediática, teve uma evolução idêntica, baixando de 0,4% para 0,2% dos sufrágios, com menos 573 votos que a formação da direita ecologista. E esteve muito longe de repetir o brilharete no círculo de Fora da Europa, onde, à conta dos votos de Macau, esteve quase a eleger um deputado há quatro anos.

Por sua vez, este ato eleitoral confirmou o afundamento completo de Marinho e Pinto, já visível nas europeias. Assim, o PDR, formação que fundou e que lidera, ficou-se igualmente por uns modestíssimos 0,2% dos boletins, quando, em 2015, obtivera 1,1%.

Mesmo a escolha de Pardal Henriques, o advogado que foi, durante o verão, o porta-voz do Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas, para cabeça de lista em Lisboa viria a revelar-se um autêntico “flop”, parecendo ter “desparecido em combate”. Resta saber se o advogado conimbricense mantem a formação ativa ou decide pela sua dissolução.

Apenas com menos 270 votos que aquele e os mesmos 0,2%, o PURP continua quase confidencial e pouco ou nada convence os reformados e pensionistas que pretende representar. Em 2015, quando apareceu, havia obtido 0,3%.

Também o JPP desceu de 0,3% para 0,2%. Trata-se de um partido local, criado no concelho madeirense de Santa Cruz, onde está bem implantado e obteve 21,6% dos votos, o que lhe valeu um resultado razoável na região autónoma da Madeira (5,5%). Apesar de tudo, perdeu votos em relação ao ato eleitoral anterior, em especial para o PS de Paulo Cafofo. Fora do arquipélago, só existe no papel e a maioria dos seus candidatos noutros círculos era madeirense,

Ainda na casa dos 0,2%, temos o PPM, liderado por Gonçalo da Câmara Pereira. Depois de, nas europeias, ter integrado a coligação Basta!, com o Chega, o CDC/PPV e o movimento Democracia 21 (D21), concorreu agora autonomamente, integrando nas listas pessoas deste último, como a sua líder, Sofia Afonso Ferreira, em segundo lugar por Lisboa. Mas os resultados foram bastante fracos, ainda piores que em 2015, quando obtivera 0,3%.

Nos últimos lugares, ficaram as duas formações que, nas últimas legislativas, integraram a coligação Agir, liderada por Joana Amaral Dias, que, então, se ficara por uns modestos 0,4% dos votos entrados nas urnas.

Agora, o desempenho de ambas ainda foi pior. Assim, o PTP, reduzido à família Madaleno, de Castelo Branco, e ao populista José Manuel Coelho, hoje uma “estrela cadente” da política madeirense, não foi além dos 0,2%, com menos 376 votos que os monárquicos, enquanto o MAS, reduzido a uma pequena franja da juventude universitária, só chega ao 0,1% graças ao arredondamento da sua percentagem de votos.

Por seu turno, os votos brancos e nulos viram a sua percentagem aumentar, passando de 3,8% para 4,9% dos votos expressos. Contudo, esse resultado é enganador, já que vem inflacionado da percentagem anormalmente alta de boletins considerados não válidos nos círculos da emigração, após a triste rábula proporcionada pelo PSD: 24,8% no da Europa e 17,1% no de Fora da Europa. A estes, há que somar ainda os brancos: 1,5% no primeiro e 0,9% no segundo.

Se considerarmos apenas o território nacional, o seu crescimento é mais modesto: de 3,7% para 4,3%.

Abstenção: aumento preocupante, mesmo com o aumento de eleitores na emigração

Ao contrário do que sucedeu nas europeias, a abstenção aumentou no território nacional, tendo passado de 43,0% em 2015 para 45,5% nestas eleições.

Porém, se o número de inscritos dentro das fronteiras nacionais diminuiu em pouco mais de 100 mil eleitores, na emigração, com o recenseamento automático dos portugueses registados nos consulados, houve um aumento de 1,2 milhões no número de recenseados. Assim, no total, o número de inscritos nos cadernos eleitorais passou de pouco mais de 9,7 milhões de eleitores para quase 10,8 milhões. Ou seja, de um momento para o outro, o país “ganhou” mais de um milhão de inscritos nos cadernos eleitorais.

Daí que, apesar de terem votado quase mais 150 mil emigrantes, a abstenção nos dois círculos a ela atribuídos aumentou ligeiramente, subindo de 88,7% para 89,2%. Com esses valores “estratosféricos”, a abstenção total, que foi de 44,1% há cinco anos passou, agora, para 51,4%.

Por isso, seria conveniente, para uma maior aproximação à realidade, distinguir entre o valor da abstenção no território nacional e o ocorrido na diáspora, a exemplo do que sucede na Finlândia, onde esse dado é oficialmente apresentado de forma diferenciada.

Para além dos dois círculos da emigração, onde atingiu os 91,2% no de Fora da Europa e 88,0% no da Europa, os valores mais elevados da abstenção registaram-se, como habitualmente, nos Açores (63,5%). Seguiram-se Bragança (55,1%), Vila Real e Faro (54,2% em ambos). Nos distritos transmontanos, onde o PSD tem forte implantação, de eleitores da direita. No segundo, o eleitorado é relativamente jovem e, por isso, mais propenso a abster-se. Foi, igualmente, muito elevada na Madeira (49,7%), na Guarda e em Viana do Castelo (49,4% nos dois) e em Viseu (49,0%), tudo áreas onde PSD e CDS são tradicionalmente fortes., e nos distritos alentejanos de Beja (67,9%) e de Portalegre (67,8%), o que confirma que uma parte do eleitorado comunista foi, igualmente, “tocado” pelo “vírus” do abstencionismo.

Em contrapartida, e também como é habitual, Braga (40,2%) e Porto (41,4%) foram aqueles onde se registaram os menores valores da abstenção, logo seguidos de Lisboa (42,7%). Ou seja, é nos principais meios urbanos que a afluência às urnas é maior.

Relativamente à sua evolução, os maiores acréscimos da abstenção ocorreram nos distritos alentejanos, fruto de um pouco usual abstencionismo de muitos eleitores do PCP: Évora (+14,3%), Beja (+13,1%), e Portalegre (+11,5%). Vêm, depois, Faro (+11,4%) e Setúbal, neste último caso devido, igualmente, a eleitores provenientes do PCP. De seguida, Santarém e Lisboa (+8,3% em ambos), onde o eleitorado comunista ainda tem algum peso, e os Açores (+8,2%), o que talvez explique a queda na votação do PS, em contraciclo com a tendência nacional.

Tal como tinha acontecido nas europeias, diminuiu na Madeira (-2,7%), o único círculo onde tal sucedeu, quiçá pela maior mobilização dos eleitores socialistas, galvanizados pelo “efeito Cafofo”, na sequência dos resultados das regionais. Com acréscimos reduzidos, temos Viana do Castelo (+0,3%), Viseu (+0,5%) e Braga (+1,0%). Tudo indica que, nesses distritos, em especial nos dois minhotos, Rui Rio terá conseguido mobilizar mais o eleitorado “laranja”, o que explica a menor queda do PSD nessas áreas. No caso viseense, a tentativa do BE em obter um mandato no distrito terá contribuído para uma maior afluência às urnas por parte de eleitores da esquerda.

Se há fatores conjunturais que podem ajudar a explicar o aumento da abstenção, como seja a desmobilização de uma grande percentagem de eleitores comunistas e, em menor grau, da direita, a verdade é que existem fatores estruturais que são responsáveis pela persistência de valores tão elevados de falta de comparência às urnas, dos quais deixamos aqui alguns:

Um grande número de eleitores, em especial das classes baixas, experimenta um sentimento de descrença faça à possibilidade de as eleições mudarem significativamente as suas vidas, algo que é exponenciado pelo rotativismo ao centro que tem caracterizado o nosso regime democrático desde meados dos anos 80.

O aumento da perceção da corrupção, do nepotismo e do compadrio associados ao sistema político, que alimenta o discurso populista antipartidos, fomentando a abstenção.

A não identificação de muitos cidadãos com nenhuma das forças políticas existentes, embora tal pareça difícil de aceitar quando se apresentaram a sufrágio 21 listas partidárias.

A difícil acessibilidade de alguns eleitores (em especial, idosos) às assembleias de voto em certas áreas, dada a redução que se foi operando nos transportes públicos.

A isso se soma, nessas áreas, a diminuição da presença do Estado, provocada pelo encerramento de serviços públicos, que se acentuou durante o governo da “troika”.

Ainda no interior, a reduzida magnitude dos círculos, que apenas permite a eleição de deputados do PS e do PSD, reduzindo as opções eleitorais aos dois maiores partidos.

Se o maior abstencionismo do eleitorado mais jovem é uma evidência empírica quase universal, a verdade é que se assiste a uma crescente despolitização das novas gerações, o que apenas acentua aquele fenómeno.

Haverá números relativamente elevados de abstenção técnica (os chamados “eleitores fantasmas”), inflacionada pelo facto de muitas autarquias municipais não darem baixa de eleitores falecidos ou emigrados para evitar perder regalias associadas ao número de eleitores inscritos.

Com resolver este problema é a pergunta do milhão de dólares. Se algumas poderão ser resolvidas se houver vontade política, outras são mais difíceis de combater. Até porque há soluções que, se poderiam servir para reduzir a abstenção, como o voto eletrónico, não deixariam de levantar questões referentes à segurança e ao exercício individual do direito de voto.

Para já, encerra-se o capítulo das legislativas. Mas inicia-se o ciclo político que elas determinaram e tudo indica que será mais imprevisível e, dado o fim da “geringonça”, com menos boas notícias para o povo que aquele que findou. Oxalá me engane!...

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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