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Argélia: a desobediência civil está a chegar

Ensaio de diálogo para a transição do regime é desautorizada pelo chefe do Exército, que só admite discutir eleições presidenciais. Mas o povo nas ruas não quer a eleição de um novo ditador. Por Luis Leiria.
Vigésima quarta sexta-feira de manifestações: o povo argelino não desiste
Vigésima quarta sexta-feira de manifestações: o povo argelino não desiste

Foi a grande novidade da 24ª sexta-feira de manifestações na Argélia. O grito “está a chegar, está a chegar a desobediência civil” espalhou-se como um rastilho de pólvora entre as centenas de milhares de pessoas que se mobilizaram em Argel e outras cidades. Foi uma demonstração de que o povo argelino não aceita a manutenção de um regime autoritário ocupado por figuras ligadas ao ex-presidente Abdelaziz Bouteflika.

A agitação em torno da desobediência civil aponta uma via para superar o impasse em que a Argélia se encontra. A poderosa mobilização que se mantém em níveis surpreendentes todas as sextas-feiras, que atravessou o mês do Ramadão (quando todos os muçulmanos jejuam durante o dia, de sol a sol) sem esmorecer, acompanhada pelas manifestações, às terças-feiras, dos estudantes universitários, conseguiu até agora a renúncia do presidente Abdelaziz Bouteflika, que se postulara a disputar o seu quinto mandato, e o cancelamento das eleições presidenciais, por falta de candidatos.

Mas, a partir desse ponto, o impasse instalou-se. O poder, que está nas mãos das Forças Armadas e tem o rosto do general Gaïd Salah, chegou a admitir a realização de um diálogo para definir o futuro, mas acabou por admitir que só aceita “dialogar” em torno da sua saída: a realização de novas eleições presidenciais.

Fora todos! Fora o sistema!”

Ora o povo que se manifesta quotidianamente só aceita um diálogo que tenha como premissa a saída de todas as figuras do regime que se agarram ao poder, como é o caso do general Gaïd Salah, do chefe do Estado interino Abdelkader Bensalah ou do primeiro-ministro Noureddine Bedoui.

“Fora todos! Fora o sistema!”, é o grito que mais se ouve nas manifestações. Outras palavras de ordem muito populares são as que têm como alvo o general que controla hoje as rédeas do poder: “Fora Gaïd Salah!”, “Estamos fartos de generais!” e ainda “Estado civil, não militar!”.

Pressionado pela força e a persistência das manifestações, o poder ensaiou um diálogo. O chefe de Estado interino Bensalah formou um painel de figuras políticas nacionais, independentes, de currículo inquestionável, com o objetivo de discutir uma transição de regime. Mas parte importante dos primeiros designados recusou-se a participar, não acreditando na sinceridade do diálogo. Finalmente foi formado um segundo painel, presidido pelo antigo presidente do parlamento Karim Younès.

Eis porém que este segundo grupo de notáveis aprova em reunião uma série de preliminares para que o diálogo tenha sucesso: a libertação de todos os presos por delito de opinião, detidos nas manifestações, o fim do dispositivo militar-policial, principalmente em Argel, que impede que o povo de outras cidades venha se manifestar na capital, e a substituição do atual governo por um outro de consenso, formado por técnicos.

Diálogo” desautorizado

Na terça-feira, 30 de setembro, Gaïd Salah discursou para rebater estas condições preliminares, considerando-as diktats, e afirmando que a única coisa que está em discussão é a realização das eleições presidenciais. Ao mesmo tempo que mostrava não estar disposto a qualquer concessão, o general desautorizou abertamente a iniciativa do diálogo, que fora de Bensalah.

Mahmoud Rechidi, secretário-geral do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST)
Mahmoud Rechidi, secretário-geral do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST)

“Não haverá diálogo sobre um conteúdo decidido por Gaïd Salah, Bensalah, Karim Younès ou Bedoui”, afirma Mahmoud Rechidi, secretário-geral do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST). Rechidi, que defende a convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, afirma que o povo argelino diz não à única saída admitida pelo general no poder: “umas presidenciais vão eleger um ditador”.

Referindo-se à iniciativa de diálogo, diz o dirigente do PST: “Mais uma vez dizemos-lhes que não haverá diálogo nem mediação enquanto os presos de opinião não forem libertados, enquanto as liberdades democráticas e as liberdades fundamentais não forem respeitadas”.

Desobediência civil, sim, mas de que forma?

É neste contexto que surge a resposta das mobilizações face ao endurecimento de Gaïd Salah: a desobediência civil. O sucesso que esta palavra de ordem obteve na 24ª sexta-feira mostra que o povo das ruas quer uma saída para o impasse, sente que a rotina das manifestações não é suficiente para conquistar o fim do regime.

Não está, porém, definido em que consiste a desobediência civil: um boicote às eleições presidenciais se elas se vierem a realizar? Seria muito arriscado, haja vista a série de fraudes gigantescas ocorridas em ocasiões anteriores.

Realizar uma greve geral? Fazer sit-ins, como no Sudão?

Uma coisa é certa: para dar este passo em frente, será necessário avançar muito na organização popular. Até agora, as manifestações não têm lideranças conhecidas, as respostas que delas saem surgem de forma aparentemente espontânea pelo sucesso que têm ou não as palavras de ordem lançadas. Para a desobediência civil, será necessário dar novos passos. Que nos dirá a 25ª sexta-feira?

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