Está aqui
Mulheres de gravata e homens de collants
Sou homem e uso collants. A minha prima é mulher e usa boné. Já a minha tia gosta de usar gravata, mas no fim de contas as minhas respostas ao exercício do teste de Inglês estavam erradas.
É interessante como um teste consegue gerar um debate estrutural sobre os preconceitos na nossa sociedade. O meu teste continha um exercício referente a peças de roupa que consistia na correspondência dos acessórios a um género (masculino ou feminino) ou a ambos. A lista continha: mala de mão, gravata, boné, collants, colar, cachecol e cinto. Eu como vivo em 2019 coloquei a palavra “both” (ambos) em todos os acessórios. O resultado foi ter recebido a avaliação “errado” nos seguintes acessórios: boné, gravata e collants. Após tentar expor educadamente o meu ponto de vista, fui ameaçado com uma falta disciplinar, apenas por a professora discordar da minha opinião em relação à correcção do teste.
Exercício de inglês
É perfeitamente normal ver mulheres com gravata e bonés ou então homens com collants, até porque os papéis de género não são mais do que construções impostas na sociedade. Vemos todos os dias jogadores de futebol com collants e mulheres de gravata e, afinal, a indústria chapeleira vende sempre para ambos os géneros, não é verdade?
Uma mulher está grávida, a família questiona o sexo da criança, para comprar um babete cor-de-rosa ou uma azul. Cria-se uma expectativa de desenvolvimento da criança mediante o seu género. Ela vai brincar com bonecas, ele vai ser jogador de futebol, mas e se ele gostar da Hello Kitty?
O problema não é só familiar, também é escolar. Numa outra disciplina que envolve computadores, um professor meu, com opiniões políticas de extrema-direita, afirmou que o lugar das mulheres era na cozinha após uma aluna questionar algo sobre o trabalho que estávamos a fazer. É assim tão difícil de compreender que as mulheres são tão ou mais capazes que qualquer homem no que toca a informática? Não é o género que nos torna aptos para exercer qualquer profissão. A competência não tem sexo.
Quando era mais novo, descobri que a minha mãe recebia menos que o meu pai para realizar exactamente a mesma função. Nunca consegui compreender o que fundamenta uma discriminação tão grave. Mas teve o dom de me abrir os olhos. Além de haver uma discriminação social no que toca à roupa de cada um e cada uma, esta discriminação é uma realidade no local de trabalho. As mulheres, actualmente, para receberem o mesmo que os homens, teriam que trabalhar, em média, mais três meses por ano.
Todos nos podemos vestir e expressar como quisermos e a escola precisa de parar de impor regras que não fazem sentido nenhum, como formatar alunos para que estes pensem que um objecto (roupa) necessita de ter um género pré-definido.
Apesar de este caso ter acontecido devido à diferença de idades abismal entre mim e a professora creio que há muito caminho e muita luta por fazer na minha faixa etária. Sonho com uma sociedade onde os alunos sejam livres de exprimir a sua opinião, onde todos e todas possam vestir o que querem e no fundo serem quem quiserem. Uma sociedade justa, baseada na igualdade, na fraternidade e na liberdade. Livre de opressões de qualquer tipo, até de escolhas de roupa. Espero que esse sonho se realize em breve; afinal nunca pensei em 2019 debater o facto de a minha tia usar gravata.
Artigo publicado em “Público P3” a 8 de fevereiro de 2018
Comentários
***descobri que a minha mãe
***descobri que a minha mãe recebia menos que o meu pai para realizar exactamente a mesma função***
Pedido de esclarecimento: será que o Sr Eduardo Couto podia ser mais específico e informar qual a função que os seus pais realizavam e, quem era(m) o(s) empregador(es)?
Bravo! Gosto de ver como a
Bravo! Gosto de ver como a sua geração está muito mais sensibilizada para este tipo de situações (ao contrário do que se passa, pelos vistos, com os seus professores)!
Quanto ao teste de inglês propriamente dito, de facto nem sequer compreendo a razão lógica para colocar este tipo de questões. Ainda por cima, em dois objectos — handbag e necklace — a professora colocou um ponto de interrogação mas lá aceitou a resposta. Mas então não se percebe porque é que não aceitou as restantes respostas. Não se pode deixar este tipo de coisas (um exame de avaliação) sujeito à «opinião» pessoal de cada professor. Se fosse o tal professor com ideias de extrema-direita a corrigir o teste, se calhar nem permitia aos homens usarem handbags ou necklaces!
Também já vi a minha tia de gravata (embora não seja um dos acessórios favoritos dela). O meu pai, ultra-conservador, religioso e até bastante sexista, usou collants durante quase toda a vida — assim como o irmão dele — apenas lhes chamava «ceroulas».
Continuo a achar que este tipo de questões não faz qualquer sentido. Se o objectivo era identificar as palavras podia-se simplesmente meter uma ilustração e perguntar o nome do objecto. Mas talvez isso seja demasiado condescendente para alunos do 11º ano. Em contrapartida, pelos vistos, mais vale dar opiniões parvas...
Seja como for, é óptimo que pelo menos o Eduardo Couto tenha a capacidade e a visão de reconhecer este disparate todo; faço votos para que os seus colegas de turma sejam assim também!
Com juventude como o Eduardo
Com juventude como o Eduardo a minha fé na humanidade está restaurada.
Compreendo perfeitamente a
Compreendo perfeitamente a insatisfação. Eu próprio, uso collants de algodão canelado, nos dias frios de Inverno. Ainda hoje me recordo, do esquema da cadeia alimentar, em que coloquei um homem a comer uma vaca e uma couve, tal como uma vaca a comer a couve. No entanto, a ligação entre o homem e couve foi assinalada como errada. Ficou a dúvida na época sobre o pensamento redutor do professor.
Adicionar novo comentário