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Bolsonão

 O Brasil está a viver um momento histórico, de combate acérrimo. Contra a indiferença ao outro e contra o ódio, este sábado, 29 de Setembro, juntaram-se milhões contra o mais facínora candidato da história das eleições presidenciais do Brasil.

O que me separa, e a muitas destas pessoas, de Bolsonaro não é por isso somente o que costuma separar a esquerda da direita. Bolsonaro está muito para lá da direita, é outra coisa. E portanto os protestos extrapolaram as fronteiras geográficas do Brasil. Não apenas houve protestos no país onde Bolsonaro se candidata, como ainda na Alemanha, em Itália, na Holanda, na África do Sul, na Hungria, no Líbano, na Irlanda, em Espanha, em França, na Argentina.

As imagens aéreas do Largo da Batata, em São Paulo, e da Cinelândia, no Rio de Janeiro mostram um massa humana que mostra que o Brasil não está morto nem amorfo e que tem um coração a palpitar. Quase não houve espaço para tanta gente, o que é irónico se dito literalmente, já que esta massa se juntou para dizer que não aceita que uns tenham lugar no mundo e outros não.

Quase não houve espaço para tanta gente, o que é irónico se dito literalmente, já que esta massa se juntou para dizer que não aceita que uns tenham lugar no mundo e outros não.

Tudo isto começou com mulheres que não baixaram a cabeça ao machismo e à misoginia de um candidato que não se dá sequer ao trabalho de escondê-los. Não tem papas na língua: as mulheres devem ganhar menos, ter uma filha em vez de um filho é “dar uma fraquejada”, as mulheres bonitas merecem (“merecem”!) ser estupradas. Mas as mulheres não têm de aguentar este discurso bacoco, babaca, opaco na praça pública e sabem o perigo que seria dar uma cama no Palácio da Alvorada a este homem que, em 27 de vida política activa, só viu aprovados dois projectos na Câmara dos Deputados. E portanto juntaram-se para fazer tremer, juntaram-se para dizer que nem pensar.

Desengane-se quem julgar que o Brasil se dividiu ao meio, já que este que era a semente se disseminou a outros grupos. O que começou por ser “Mulheres contra Bolsonaro” no Facebook deu azo a dezenas de grupos diversificados que servem no fundo para dizer que todos temos de estar contra Bolsonaro.

Um apanhado rápido levou-me a: LGBTs contra Bolsonaro; Professores unidos contra Bolsonaro; Brasileiras no exterior contra Bolsonaro; Mulheres unidas contra Bolsonaro; Mulheres no Exterior contra Bolsonaro; Homens unidos contra Bolsonaro; Mulheres unidas contra Bolsonaro Brasil; Unidxs contra Bolsonazi; Terreiros contra Bolsonaro; Advocacia brasileira contra Bolsonaro; Judeus contra Bolsonaro; Metroviários contra Bolsonaro; Evangélicos contra Bolsonaro; Otakus contra Bolsonaro; Negros e negras contra Bolsonaro; Artistas unidos contra Bolsonaro; Mulheres unidas Bolsonaro; Amantes de sushi contra Bolsonaro; Mulheres, homens, negros Lgbts, todos unidos contra Bolsonaro; Estudantes contra Bolsonaro; Educação contra Bolsonaro; Pokémons contra Bolsonaro; Biólogos contra Bolsonaro; POCs Unidas contra Bolsonaro; Mães e Avós unidas contra Bolsonaro; Marotonistas da Netflix contra contra Bolsonaro; Cristãos contra Bolsonaro; Advogadas e advogados contra Bolsonaro; Ateus e agnósticos contra Jair Bolsonaro; Mulheres unidas na França contra Bolsonaro; Juristas, docentes e estudantes de Humanidades contra Bolsonaro; Assistentes sociais contra Bolsonaro; Cachorros contra Bolsonaro; Usuários de crocs contra Bolsonaro; Juntos contra Bolsonaro; Muçulmanos contra Bolsonaro; Clariceanas contra Bolsonaro; França contra Bolsonaro; Pantaneiros contra Bolsonaro; Protetores de animais unidos contra Bolsonaro; Mineiras contra Bolsonaro; Gente que não sabe flertar contra Bolsonaro; Alienígenas de Marte contra Bolsonaro; Gatos contra Bolsonaro; Capivaras contra Bolsonaro; Escritoras e escritores contra Bolsonaro; Famílias desunidas por causa de Bolsonaro contra Bolsonaro; Degustadores de salgados contra Bolsonaro; Plantas contra Bolsonaro; Blocos de carnaval de rua contra Bolsonaro; Mulheres e homens contra Bolsonaro; Pessoas com deficiência contra Bolsonaro; Veganos contra Bolsonaro; Biólogos contra Bolsonaro; Ornitorrincos contra Bolsonaro; Unicórnios contra Bolsonaro; Brasil contra Bolsonaro; O mundo contra Bolsonaro; O planeta Terra contra Bolsonaro; Todos contra Bolsonaro. Isso: todos contra Bolsonaro.

 


Fotografia: Marcia Zoet/Illumina

Gente de vários quadrantes políticos, com vidas diferentes, condições diferentes, opiniões, cores e genitais diferentes juntou-se não para evitar um mal maior, mas mesmo para evitar o maior mal. Jair Bolsonaro representa na política tudo o que deve ser rejeitado, da esquerda à direita, e rejeitá-lo não diz portanto respeito somente a mulheres, a comunistas, a gays, a pobres, a pretos.

A ascensão de alguém como Bolsonaro não diz sequer respeito somente ao Brasil, diz respeito a todos quantos querem ter algo a dizer sobre o mundo em que vivemos, o mundo que aceitamos, o mundo que queremos ter e fazer, o papel de cada sapiens sapiens nesse mundo e a dignidade que merece. E que ninguém se iluda, é de dignidade que tratamos, do mais básico que deve existir em democracia, de definir o cânone dos direitos sociais, aquele conjunto de direitos e assumpções em que ninguém poderá tocar, restringindo o alcance dos poderes políticos. Não, não aceitamos que um facínora nos venha dizer que umas vidas valem mais do que outras.

E que ninguém se iluda, é de dignidade que tratamos, do mais básico que deve existir em democracia, de definir o cânone dos direitos sociais, aquele conjunto de direitos e assumpções em que ninguém poderá tocar, restringindo o alcance dos poderes políticos.

Perturbador, perturbado, violento, maníaco, fascinado com a violência, estimulado com a violência, excitado com a violência. Odeia gays e não o esconde, diz que preferia ter um filho morto do que um filho gay, que ser gay é resultado de falta da pancada na infância. Ou seja, nem a molecada escapa: seja pelos genes, pela idade, pela cor, pelas hormonas, do ponto de vista de Bolsonaro, todos merecem pancada menos ele.

Culturalmente vazio, é incapaz de um rasgo, é intelectual e moralmente desonesto, afirma ódio no vazio. Faz piadas porque lhe é indiferente a seriedade do que tem nas mãos: “Feminicídio? Não, o que vai haver é homicídio”. Parece cenário de guerra e é mesmo. Perguntado pela comunicação social sobre a morte de mulheres por serem mulheres, a cultura patriarcal que permite que a violência lhes seja dirigida, o que faz é zoar com a questão e insistir nas mortes. E desengane-se quem pensar em pesar da sua parte: di-lo de sorriso no rosto, polegares no ar, no país onde se bebe água de côco e morrem 12 mulheres por dia às mãos da violência machista.

Outra: não há racismo no Brasil, afirma, referindo-se ao país construído às costas dos negros que Portugal levou para lá e dos ameríndios que já lá estavam. Neste caso, a afirmação não me parece somente ideológica, mas também o resultado de ausência de capacidade de raciocínio, razão pela qual é pavoroso ver alguém assim nas bocas do mundo. Trata-se de um homem que não tem um rasgo de brilho, um raciocínio coerente, um caminho a seguir.

Ora vejamos: de que nega o racismo porque não tem interesse na igualdade entre as pessoas e porque, para si, a cor da pele significa muito mais do que o tipo de protector solar que se deve usar no calçadão, ninguém duvida, e desse ponto de vista o seu racismo é ideológico. Vemo-lo nas afirmações ignaras, nas provocações, nos insultos desalmados e boçais a que se permite porque julga que não há qualquer mal, pelo contrário, há mérito, em pôr-se à frente de câmeras acima de qualquer negro. E por isso lança frases que são lanças.

Ora vejamos: Bolsonaro vai a um quilombola, onde vê que o afrodescendente mais leve pesa sete arrobas. “Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais.” Era piada de mau gosto? Era uma laivo que deixa um arrependimento a seguir? Nada disso: “Não fui maldoso quando disse que um quilombola que pesava 7 arrobas não serve nem para procriar”. Maldade nossa, afinal. E se um filho se apaixonasse por uma negra? Não há “risco”: “meus filhos foram muito bem educados”. E atira, gratuitamente: “não viveram em ambientes como lamentavelmente é o teu”. A pergunta foi de Preta Gil, cantora e apresentadora, filha de Gilberto Gil e Sandra Gadelha. Mas nem quis responder-lhe a sério, afinal a pergunta foi insulto: “não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja”. A probabilidade de Bolsonaro não ser racista é igual à de eu ser um unicórnio.

E outras, todas ledas: eu sou favorável à tortura, o erro da ditadura foi torturar e não matar, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater. A estratégia de comunicação política é a ideia de paulada sobre o outro.

E outras, todas ledas: eu sou favorável à tortura, o erro da ditadura foi torturar e não matar, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater. A estratégia de comunicação política é a ideia de paulada sobre o outro.

Sobre o Brasil, não vale a pena estar com grandes contas, basta isto: num país em que 44,7% da população é branca, 63% de quem ganha menos do que o salário mínimo é negra. Dos brasileiros mais ricos, 11% são negros, 85% brancos. Mais: 77% dos jovens assassinados no Brasil são negros. Podíamos dizer que é coincidência, mas na política não há coincidências.

E fala sério, Bolsonaro já falou com algum negro? Eu saí para perguntar: “Podes dar-me exemplos de casos quotidianos de racismo no Brasil?” A primeira frase da resposta foi a expectável: “Ah, tem vários…” E depois: seguidos por seguranças nos mais variados lugares (ser preto é ser criminoso); confundidos com funcionários de lojas, mesmo que usem uniformes e eles não (preto é para servir); a pré-concepção de uma subalternidade (se aparece um nome no papel de alguém que tem poder, imagina-se que aí vem alguém com pouca melanina); os empregos que exigem “boa aparência” e a forma obtusa como o sinónimo de “bom” é pele clara, cabelo alisado e nunca crespo. Olhados com desconfiança, olhados com condescendência, alvos favoritíssimos de violência policial, muito mais difícil e raramente olhados enquanto intelectuais, claro que a vida de um negro tem mais degraus do que a de um branco.

Olhados com desconfiança, olhados com condescendência, alvos favoritíssimos de violência policial, muito mais difícil e raramente olhados enquanto intelectuais, claro que a vida de um negro tem mais degraus do que a de um branco.

Ainda assim, Bolsonaro pergunta-se, indignado ou simplesmente desconhecedor de qualquer livro de história: “Que dívida histórica é essa que temos com os negros?” Tudo será ideológico, mas no caso há muita incapacidade de concatenar também, de pensar em quadro maior, e em simultâneo uma capacidade de enguia de passar ao lado da história, brasileira e portuguesa (tantas vezes a mesma), passada e presente.

Talvez no meio disto Jair se tenha esquecido de perguntar a qualquer negro: “você acha que existe racismo no Brasil?” Claro que se a pergunta viesse de alguém que diz o que citei só podia ser piada. Mas vamos imaginar que alguém perguntava a qualquer preto, a qualquer branco, a qualquer azul às riscas, se acha que há racismo no Brasil. E vamos imaginar que a pessoa em questão tinha acesso às estatísticas: 61,6% dos reclusos são pretos, 10% dos livros brasileiros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por autores negros, 4% dos roteiristas são negros, 2% dos directores de filmes nacionais também. A Universidade Estadual do Rio fez um estudo sobre as produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheteiras entre 2002 e 2014: 31% tinham actores negros no elenco, quase sempre a representar papéis associados à pobreza e à criminalidade. Desemprego, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: 14,4% entre negros, 10,5% de brancos.

O que Bolsonaro quer no Brasil é o que Portugal já quis, Casa-Grande & Senzala, uma sociedade formada no sacrifício de outros, a determinação racial como forma de formar um povo.

Brasil, 2018, um país em que ainda há negros que servem brancos e ainda aparece um candidato canalha à presidência da república com uma mentalidade à século XVI. O que Bolsonaro quer no Brasil é o que Portugal já quis, Casa-Grande & Senzala, uma sociedade formada no sacrifício de outros, a determinação racial como forma de formar um povo.

Facínora, mentiroso, irascível, com um discurso de ódio surpreendemente populista, ousa afirmar que as minorias não têm de ter direitos nenhuns, as maiorias sim. Aliás, mais longe, as primeiras devem respeitar as segundas, temê-las. “Têm que se curvar para a maioria” (!), afirma, num discurso em que tudo falha: números de pretos, mulheres, ricos. É que os brancos não são maioria no Brasil e os ricos menos ainda. Ora e pois claro que Bolsonaro odeia pobres. Aliás, odeia-os tanto que, em vez de querer acabar com a pobreza, quer acabar com eles. O plano não é mudar a estrutura económica do país, o tecido económico, do país, redistribuir rendimentos, o plano é esterilizar quem não tem nada no bolso. O Brasil é a sexta economia do mundo, mas a sexta economia do mundo está longe de chegar a toda a gente. Há lugares com desigualdades económicas, no Brasil há clivagens. Mas tudo está bem para Bolsonaro, cuja fortuna se multiplica, e caso o leitor se pergunta o que é o que facínora candidato fez com o seu auxílio-moradia, ele não esconde: “comi gente”. Desculpe? Exacto, é assim mesmo: “Como eu estava solteiro naquela época, esse dinheiro de auxílio-moradia eu usava para comer gente. Tá satisfeita agora ou não?” Choque e espanto.

Facínora, mentiroso, irascível, com um discurso de ódio surpreendemente populista, ousa afirmar que as minorias não têm de ter direitos nenhuns, as maiorias sim. Aliás, mais longe, as primeiras devem respeitar as segundas, temê-las.

Nada do que digo é novidade, nada deste horror veio escondido. Mas entretanto aconteceu o dia 29 de Setembro, e que bonito foi. O Brasil é um país onde milhões foram sacrificados e ainda assim tem a capacidade apaixonante de desencantar, extrair, roubar a beleza ao horror, combater com uma força quase contrária ao fado português, assumir a alegria como força ímpar, usá-la como forma de combate.

Profundamente dividido, o Brasil tem um lado que quer matá-lo. E que bonito foi ver e ser tanta gente a defender a sobrevivência do país, milhões nas ruas a rejeitar o femicídio, o homicídio, o genocídio, que bom foi ver mulheres a dizer que os seus corpos são delas, homens a dizer que os corpos delas são delas, negros de cabeça levantada, brancos a olhá-los nos olhos, já fartos disto tudo. Que bom foi ver tanta gente diferente e junta a dizer que é toda igual.

A genética só tem poder no laboratório, nas ruas somos iguais, nas ruas somos massa indistinta. Aliás, foi essa massa indistinta que mostraram as imagens aéreas de milhões que recusam o regresso ao século XXI, XVIII, XVII, XVI, que vêem no Brasil um país, não terrra a ser tombada.

O fim do racismo não deve depender só da luta dos negros, deve depender do fim da sensação de superioridade racial dos brancos, por isso o combate ao racismo é também assunto de quem usa na praia protector 50+. O fim do machismo não deve depender só da luta das mulheres, deve depender da atitude dos homens para com elas, por isso o combate ao machismo é também assunto de quem tem cerca de 300 a 900 nanogramas de testosterona por decilitro de sangue. O fim da homofobia não deve depender só da luta dos gays, deve depender da ideia comum de que cada um faz o que quiser com os genitais. A genética só tem poder no laboratório, nas ruas somos iguais, nas ruas somos massa indistinta. Aliás, foi essa massa indistinta que mostraram as imagens aéreas de milhões que recusam o regresso ao século XIX, XVIII, XVII, XVI, que vêem no Brasil um país, não terrra a ser tombada.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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