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João Semedo (1951-2018)

Militante comunista contra a ditadura, defendeu a renovação do PCP e encontrou no Bloco de Esquerda o espaço de intervenção capaz de mudar a política portuguesa. “Tive a vida que escolhi, a vida que quis, não tenho nada de que me arrependa no que foi importante”, disse João Semedo na última grande entrevista que concedeu.

Faleceu esta terça-feira, 17 de julho, o dirigente bloquista João Semedo, ao fim de alguns anos de batalha contra o cancro.

Filho de um engenheiro militante comunista e de uma professora, João Semedo cresceu num ambiente familiar em que se discutia abertamente o estado do país e o descontentamento face ao regime de Salazar e Caetano. Os últimos anos da ditadura viram o início da atividade política de João Semedo, iniciada no liceu com a tragédia das cheias de 1967 e a mobilização estudantil no apoio às vítimas, que viviam na miséria às portas de Lisboa. As sessões de conversas organizadas pelo padre Vítor Feytor Pinto no Liceu Camões fizeram-no abrir horizontes e conhecer o mundo que não se falava nas salas de aula. Em 1968, já estudante na Faculdade de Medicina, participa na primeira manifestação, contra a guerra do Vietname, interrompida por uma carga policial.

A adesão ao PCP dá-se em 1972, através da União de Estudantes Comunistas, cuja Comissão Central integrou, participando em atividades de agitação e propaganda e também no apoio aos funcionários clandestinos. Foi eleito para a direção da Associação de Estudantes e chegou a ser preso em 1973 quando distribuía panfletos a exigir eleições livres. Acabou por passar duas semanas preso em Caxias, recusando-se a assinar o documento elaborado pela PIDE a confessar atividades subversivas e a comprometer-se a abandoná-las.

Já depois do 25 de Abril, participou na criação e dinamização do Movimento ALFA (alfabetização de adultos) e torna-se funcionário do PCP, a convite de Joaquim Pina Moura e Jorge Araújo. Muda-se para o Porto em 1978, onde desempenha tarefas de organização no setor intelectual, política de saúde e relações com a imprensa. Mais tarde assume tarefas de organização concelhia. Demite-se de funcionário em 1991, bem como de membro do Comité Central, no dia seguinte à reunião em que votou contra a expulsão de Raimundo Narciso, José Luís Judas, Mário Lino e Barros Moura, defendendo que questões políticas devem ser resolvidas politicamente e não administrativamente.

A década de 1990 marcou o regresso à medicina, com passagem por um centro de abrigo para toxicodependentes e em Serviços de Atendimento Permanentes, a par de uma pós-graduação em Toxicodependências na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. Foi nomeado diretor do Hospital Joaquim Urbano, no Porto, onde durante seis anos, entre 2000 e 2006, liderou o processo de remodelação do hospital especializado no tratamento de doenças respiratórias e infecciosas, trazendo inovações no campo do tratamento do VIH, SIDA e das hepatites. Mais tarde, reconheceu que esses foram os anos em que se sentiu mais realizado profissionalmente.

Para além da atividade política e na medicina, o tempo de João Semedo no Porto foi preenchido também com a intervenção na Cooperativa Árvore, na direção do FITEI, na Universidade Popular e na fundação do Sindicato dos Médicos do Norte.

No final dos anos 1990, regressa à militância mais ativa no âmbito da preparação do Congresso do PCP, então liderado por Carlos Carvalhas. Apoia a tentativa de renovação do partido protagonizada por Luís Sá, no documento Novo Impulso. O falecimento do dirigente comunista e a oposição da ala liderada por Álvaro Cunhal ditam a derrota dessa linha política no XVI Congresso e a saída do partido por parte de João Semedo e muitos outros quadros do PCP.

Em 2003, funda com outros ex-dirigentes do PCP o Movimento da Renovação Comunista, com vista a dar continuidade aos debates e reflexões iniciados anos antes no interior do partido. No ano seguinte, aceita o convite de Miguel Portas para integrar como independente as listas do Bloco para o Parlamento Europeu. A aproximação ao Bloco de Esquerda prosseguiu com a participação de João Semedo nas listas às legislativas pelo Porto e acaba por se tornar deputado, substituindo João Teixeira Lopes em março de 2006. Adere ao Bloco em 2007 e protagonizou candidaturas autárquicas em Gondomar (enquanto independente em 2005), Gaia (2009) e Lisboa (2013).

Foi parlamentar durante três legislaturas, até renunciar ao mandato por motivos de saúde em março de 2015. Ao longo de nove anos de atividade parlamentar, assumiu a coordenação dos temas relacionados com a política de saúde — foi vice-presidente dessa comissão parlamentar. Em entrevista ao esquerda.net, destacou entre as várias leis aprovadas a do testamento vital e a introdução na lei do conceito de “tempo de espera” e a imposição de limites a esse tempo, incluído na Carta dos Direitos dos Utentes do SNS. “Quando olho para trás, tenho muita pena que alguns não tenham sido aprovados, mas estes foram um grande contributo do Bloco para o SNS”, sublinhou.

No parlamento, Semedo foi o principal protagonista dos trabalhos da comissão de inquérito ao BPN, onde confrontou Oliveira e Costa, Dias Loureiro e outros ex-banqueiros e dirigentes laranja com as suas responsabilidades no que chamou de “o crime do século”.

Em 2012, o Bloco de Esquerda viveu o primeiro momento de transição da direção, com a saída de Francisco Louçã da coordenação do partido. A solução encontrada foi a de implementar pela primeira vez num partido em Portugal um modelo de coordenação paritária, protagonizado por João Semedo e Catarina Martins. Na Convenção seguinte, em 2014, a moção liderada por Semedo e Catarina obtém uma vantagem por margem mínima sobre a moção liderada por Pedro Filipe Soares. Para ultrapassar esse impasse e evitar o risco de divisão profunda no partido, João Semedo empenha-se na negociação para encontrar uma solução de modelo de coordenação, que resultou na criação de uma comissão permanente com Catarina Martins a assumir o lugar de porta-voz.

O ano de 2015 trouxe o melhor resultado eleitoral do Bloco em eleições legislativas, que permitiu formar a atual maioria parlamentar que sustenta o governo do PS e permitiu travar o rumo de empobrecimento que o país tomou desde o início da década. Para João Semedo, foi um ano de luta contra o cancro que lhe tirou as cordas vocais, mas não lhe tirou a vontade de intervir politicamente. Assumiu o combate pelo direito a morrer com dignidade, que já tinha protagonizado na Assembleia da República quando apresentou os projetos de lei que viriam a dar origem à aprovação do Testamento Vital e das mudanças na rede de cuidados paliativos.

A doença não lhe permitiu levar até ao fim o seu último desafio eleitoral, o da candidatura à Câmara do Porto nas autárquicas de 2017. Com as limitações da voz a condicionarem as intervenções públicas, fez questão de intervir na abertura da conferência que organizou em Lisboa sobre despenalização da morte assistida, em fevereiro de 2018, com a participação de especialistas e deputados de vários partidos. Após a votação que chumbou a despenalização por escassa margem, Semedo afirmou que a sua aprovação "é uma questão de tempo: não foi agora, será na próxima legislatura".

Em entrevista ao Observador em 2017, afirmou que a proximidade a muitas situações dramáticas que viveu durante o internamento no Instituto Português de Oncologia só veio reforçar as suas convicções a favor da despenalização da morte assistida. Mas não mudou a sua forma de encarar a morte: “Mudou mais a forma de encarar a vida, sobretudo, como nos agarramos a ela, voltar a vivê-la sem limitações, fazer o que fazíamos, não desperdiçar nada, ganhar gosto até por algumas coisas que nos contrariavam, relativizar de outra forma problemas e preocupações”.

“Tive a vida que escolhi, a vida que quis, não tenho nada de que me arrependa no que foi importante. Segui sempre a minha intuição, nunca me senti a fazer o que não queria. Sim, fui muito feliz, sou e acho que continuarei a ser”, concluiu João Semedo.

 

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