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O MDM sentado à espera do ponto de rebuçado

Significa isto que, para o MDM, os milhões de pessoas que ocuparam as praças de 300 cidades de mais de 50 países do mundo, numa greve internacional sem precedentes, estão equivocados.

«Hoje eu venho aqui falar/ duma coisa que me anda a atormentar/ e quanto mais eu penso mais eu cismo/ como é que gente tão socialista/ desiste de fazer o socialismo.»

Vieram-me à memória estes versos da canção do Sérgio Godinho quando li as declarações de Regina Marques, dirigente do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), que é a organização de mulheres do PCP, proferidas na marcha que organizaram no dia 10 de março. O MDM, que não se juntou à convocatória da Greve Internacional, que também teve expressão no nosso país, levando centenas de feministas a ocupar praças e a marchar pela igualdade em Braga, Porto, Coimbra, Lisboa e Ponta Delgada, considera que esta greve não tem razão de existir. Significa isto que, para o MDM, os milhões de pessoas que ocuparam as praças de mais de 300 cidades de mais de 50 países do mundo, numa greve internacional sem precedentes, estão equivocados. E, uma vez mais, o MDM empurra-me para a revisitação de memórias, desta vez a daquela anedota em que um pai e uma mãe de um desastrado jovem militar o observam numa parada e concluem que, no meio de tanta gente, o seu filho é o único que marcha direito.

Para o MDM, a greve no Estado Espanhol, que mobilizou mais de 5 milhões de pessoas e, entre outras coisas, conseguiu paralisar redações de órgãos de comunicação social, fazendo com que fossem impressos jornais com páginas em branco, foi um enorme show off: «no fundo, [a greve das mulheres em Espanha] é também um “show-off” muito grande, ao qual os meios de comunicação social têm dado uma grande importância». Sobre as mulheres espanholas e portuguesas, diz o MDM: «Achamos que elas têm a suas razões para fazer isso, mas nós, em Portugal, não [temos] razões ainda para fazer isso. E porquê? Só metade das mulheres é que são trabalhadoras e têm de fazer greve por razões laborais e não por outras questões».

Pelo que foi dito, sinto-me autorizada a supor que o MDM sabe que as mulheres em Portugal ganham em média menos 16,7% do que os homens, que têm, em média, uma jornada de trabalho diária de mais de 12 horas, se contabilizarmos o trabalho remunerado e o trabalho doméstico e de cuidado, que sabe ou deveria saber que 16,5% de mulheres se afirmam vítimas de assédio sexual no trabalho e que 12,6% se afirmam vítimas de assédio moral. Mas, pelo vistos, isto para o MDM não é uma realidade que deva preocupar-nos sobremaneira, pelo menos ainda. O facto de, em 2017, a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) ter sido chamada a emitir 747 pareceres sobre tentativas de despedimento de mulheres grávidas e/ou lactantes e recusas de autorização de horário flexível a trabalhadoras com responsabilidades familiares também parece não motivar ainda o MDM a descobrir que o mercado de trabalho é desigual o suficiente. Para o MDM, este retrato não justifica uma Greve, pelo menos ainda, porque o ponto de rebuçado ainda não foi atingido.

Continuemos com as declarações do MDM: «A greve é algo que está instituído para quem trabalha. Uma mulher que não trabalha, não faz greve. Quem é o patrão que se vai sentir incomodado com essa greve? Portanto a greve é uma questão laboral (...). Uma reformada faz greve contra quem?».

É uma pena que o MDM tenha um entendimento tão estreito do significado e do potencial de uma Greve. Aliás, até gostava que o MDM me explicasse contra que patrão se faz uma Greve Geral. É que uma Greve Geral faz-se contra um governo ou uma determinada política, não se faz contra um patrão concreto. Diz o MDM que «uma mulher que não trabalha não faz greve». Pois eu desafio o MDM a apresentar-me uma mulher que não trabalhe! Enquanto o MDM tiver o entendimento de que trabalho é apenas o trabalho remunerado, nunca perceberá do que fala o movimento feminista quando traz para a discussão o espaço da reprodução e o trabalho doméstico e do cuidado. Enquanto não perceber que as greves têm o potencial de uma enorme demonstração de força social, continuarão a excluir das lutas as precárias, as desempregadas, as trabalhadoras do setor informal e, sim, a arrumar as reformadas no cantinho da inatividade política e social.

Lamento que o MDM e o PCP se coloquem neste ponto de vista tão conservador e se deixem arrastar pela sua oposição à paridade entre mulheres e homens – o PCP votou contra, lembram-se? – e que agora não consigam perceber que o movimento social está a trazer e a organizar novas forças para enfrentar a desigualdade e a opressão.

Mas eu tenho notícias para o MDM. Este fim de semana, cerca de duas centenas de feministas de vários coletivos e associações de vários cantos do país estiveram reunidas no Porto no Encontro de Mulheres “Todas as Vozes Contam”. E uma das decisões tomadas foi a de voltar a convocar a Greve de 8 de Março. Em 2019 voltaremos a organizá-la, porque para nós o ponto de rebuçado há muito que foi atingido. Vamos voltar a colocar o nome de cidades portuguesas neste grande movimento internacional de resistência e de afirmação feminista que de Braga a Gaza, do Porto a Bilbau, de Coimbra a Manila, de Lisboa a Katmandu, de Ponta Delgada a Ciudad Juaréz, Nova Deli, São Paulo, Cabul, Nairobi, Buenos Aires, Nova Iorque, Seoul, Karachi... colocou as mulheres no lugar de fala, trouxe para o centro da discussão política a indecência e a insuportabilidade da desigualdade de género e a urgência de tomarmos o nosso futuro nas mãos.

Sobre o/a autor(a)

Editora, ativista feminista, membro do coletivo feminista A Coletiva
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