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Sobre a partilha: consensos, ou nem por isso?

A imprensa e alguns blogs, erradamente, têm repetido que todos os partidos apoiam o projeto de lei apresentado pelo PS que pretende taxar os discos rígidos e memória flash para compensar os autores. A deputada Catarina Martins esclarece a polémica e expõe as objeções do Bloco e aponta caminho futuros.

A propósito do debate sobre a #pl118 e a cópia privada

Catarina Martins, deputada do Bloco de Esquerda. 

Sobre o projeto lei do PS, e a oposição do BE a esta proposta, já aqui escrevi. Porque se continua a afirmar que todos os partidos estão de acordo com o #pl118 ou por que razão apresentou o PS este projeto, já não consigo explicar. É perguntar a quem sabe, se alguém souber.

Mas nos últimos dias li muito, tive reuniões, debati na net e ao vivo, e, de tudo isso, aqui deixo o que de mais relevante penso/disse/ouvi/aprendi nestes dias:

1. Isto não tem nada que ver com cópias

O mecanismo da chamada cópia privada é uma exceção ao direito de autor que, conforme uma diretiva europeia, os países podem ou não implementar e que é acompanhada de uma taxa ou tarifa para compensar os autores. Isto é formalmente. Vamos à substância. A cópia privada é um mecanismo que afirma a legalidade de uma série de reproduções para fins não comerciais de obras protegidas por direitos de autor (uso privado, educação, etc.). A compensação que a lei prevê não é para pagar aos autores copiados nem é por cada cópia feita; é um mecanismo genérico de taxar indústrias que permitem reprodução de conteúdos e fazer essas taxas reverter para o setor cultural e científico. Os países que não têm taxa, como o Reino Unido, proíbem toda e qualquer reprodução.

2. Isto tem tudo que ver com investimento público e má consciência

Quando o avanço tecnológico devia ter dado mais meios à criação artística e científica de cada local, porque a libertou dos seus distribuidores/controladores tradicionais, o que aconteceu foi o contrário. Porque os Governos subordinaram as políticas culturais, como a do audiovisual (sempre central porque é a tv que chega ao grande público) à grande indústria do entretenimento multinacional e cortaram o investimento público no conhecimento. E, em vez de se emendar a mão, os mesmos que lançaram a TDT com 4 canais e baixaram o investimento público na cultura de 0,8% do OE para 0,1% querem agora aliviar consciências e dizer que querem apoiar a cultura com um mecanismo de tributação tão cego e injusto como a subida do IVA.

3. Se o que se quer proteger é os autores, o início da conversa tem de ser a partilha

As indústrias de distribuição, tanto as tradicionais como as atuais, fazem pressão em toda a Europa para restringir a liberdade da partilha. Mas não para proteger os autores. Há obras editadas com DRM e outros mecanismos que impedem a sua cópia mesmo para os fins que a lei prevê e até de autores em domínio público. Todos os dias milhares de pessoas são obrigadas a comprar obras que só podem ser usufruídas utilizando um determinado software.

Em Portugal, é possível ser-se preso por download. Não se percebe que autor se sente protegido assim. Conhecimento partilhado, não é sinónimo de desrespeito pelo trabalho autoral ou muito menos exigência de trabalho gratuito. Não é, de todo, aceitar que alguém faça negócio com o trabalho de outra pessoa. É sim compreender que a comunidade cresce pela partilha. Qualquer ideia de compensação tem de passar pela ideia de partilha.

4. Outros caminhos

Se uma série de indústrias cresce porque há conhecimento e os setores que geram conhecimento estão a ficar sem capacidade para o fazer porque não geram receitas diretamente, são o investimento público e a política fiscal que devem corrigir o problema. Taxar cada pessoa por consumir um determinado produto não faz muito sentido. Mas numa altura em que os governos europeus nem querem ouvir falar de investimento público, haverá outros caminhos? Talvez. Podemos impor tarifas a alguns setores da economia para compensar a partilha (fazendo o custo recair sobre a margem de lucro e não sobre os consumidores) ou, como está a ser debatido na EU, implementar uma flat-rate (o pagamento de uma taxa para se poder ter direito a um universo de partilha).

Mas a imposição de mecanismos destes não responde a duas questões essenciais: garantir remuneração para os criadores (limitar as margens das distribuidoras, tornar mais transparentes e abrangentes as entidades de gestão coletiva) e o princípio da partilha (legalizar a partilha não comercial, ilegalizar mecanismos que impedem partilha, garantir privacidade dos utilizadores). Na verdade, voltamos sempre ao necessário início de conversa: a partilha. 

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