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O inferno na fábrica do mundo

O ritmo de trabalho nas fábricas chinesas faz com que o trabalho de Chaplin no famoso “Tempos Modernos” pareça uma brincadeira.

A China é um país de contradições. Comunista no nome, é hoje o centro do capitalismo mais selvagem. Ditatorial no regime, o seu governo é recebido com todas as honras no mundo democrático. Uma economia dirigida pelo Estado, alberga uma elite corrupta que explora a população.

Mas as contradições são apenas aparentes. No mundo dos negócios, a procura do lucro vale sempre mais que o respeito pelas pessoas, logo, não surpreende ver os partidos do centro a vergar-se perante um regime político que tanto criticam. No mundo da ortodoxia, a aparência vale mais que a essência, portanto não surpreende ver muitos comunistas ainda mal refeitos da queda da URSS a vergar-se perante o Partido Comunista Chinês. Só não se verga perante a China quem não põe os seus princípios à venda e isso é algo raro no panorama político atual. Daí a máxima que o Bloco de Esquerda aprovou na moção vencedora da VI Convenção Nacional: a esquerda de hoje define-se em função da sua atitude relativamente à ditadura chinesa.
Não é fácil encontrar as palavras certas para descrever o horror que enfrentam diariamente as/os trabalhadoras/es chinesas/os que produzem muitos dos bens que consumimos por cá. Podemos, contudo, ter um retrato parcial da situação através de uma excursão pelas várias dimensões da exploração laboral.

Comecemos pelas mortes no trabalho. Nas fábricas chinesas, onde muitas/os trabalhadoras/es têm de trabalhar 26 dias por mês, 12 horas por dia, e suportar turnos de 24 horas ou mais, é tão comum alguém morrer de cansaço que existe mesmo uma palavra para isso: “gulaosi”.

A estas mortes há que acrescentar os suicídios no local de trabalho. No ano passado, a Foxconn, fornecedora de componentes para a Apple, tornou-se famosa por registar 11 suicídios num ano. Quantas mais mortes por desespero ocorrem na China é impossível saber, mas a resposta que a empresa deu ao sucedido – primeiro obrigar os/as trabalhadores/as a assinar um acordo a prometer que não se iriam suicidar e depois investir em máquinas para reduzir o número de trabalhadoras/es - é ilustrativo de como este tipo de problemas são resolvidos no país conhecido como “a fábrica do mundo”.

Passemos para a escravatura. A China conta com um sistema de prisões que incorpora cerca de 1000 “Laogai”, campos de trabalho em que se amontoam dissidentes políticos, membros de religiões proibidas e condenados por crimes comuns. Mais que prisões, os “Laogai” fazem parte de uma rede de indústrias que fabrica todo o tipo de produtos baratos para venda em países ocidentais, usando trabalho não remunerado. Como uma reportagem da Al Jazeera mostrou(1), as condições de trabalho nestas prisões são extremamente árduas e muitos/as não sobrevivem ao tormento.

Olhemos ainda para os acidentes no trabalho. Em 2003, o governo chinês estimava em 70 mil o número de mineiros de carvão que todos os anos se juntam à longa lista de doentes de pneumoconiose dos carvoeiros e admitia que 80% das mortes em minas de carvão se davam na China. Em 2005, estatísticas oficiais apontavam para mais de 655 mil acidentes de trabalho. Estes números, apesar de aterradores, estarão certamente muito sub-estimados, sendo impossível obter estatísticas corretas num país em que o governo impede a entrada de observadores externos. Vejamos então a intensidade do trabalho. O ritmo de trabalho nas fábricas chinesas faz com que o trabalho de Chaplin no famoso “Tempos Modernos” pareça uma brincadeira. Nas fábricas da HP, por exemplo, as/os trabalhadoras/es têm de executar uma ação a cada três segundos, trabalhando dez horas por dia sem direito a qualquer pausa(2). Este tipo de situação é comum, com o controlo sobre o corpo dos/as operários/as a estender-se à regulação estrita do tempo que têm para se servirem da casa de banho.

Quanto à proteção no trabalho, pode-se dizer que é inexistente. Quem tiver um acidente no trabalho e ficar sem um membro está condenado à miséria para o resto da vida. O mesmo para quem está no desemprego. O poder do patronato sobre o trabalho é quase total, não existindo o direito à greve ou à proteção contra despedimento sem justa causa. A discriminação por género, idade, etnia ou até altura e peso é extremamente comum, apesar de proibida. No país apenas existe uma central sindical, controlada pelo governo.

Terminemos a nossa excursão com a remuneração do trabalho. O salário mínimo varia de região para região, variando entre 87€ em Chongqing e 161€ em Shenzhen(3). Em qualquer dos casos, a quantia mal dá para sobreviver, pelo que os/as trabalhadores/as não podem comprar o que produzem. Segundo a estimativa da empresa de estudos de mercado iSuppli, os 463€ (600$) que custa um iPhone 4 podem decompor-se em 278€ de margem de lucro para a Apple, 180€ de custos com componentes e custos diversos e uns meros 5€ de custos de montagem(4). Tendo em conta que os custos do trabalho representam uma fração dos custos de montagem, a figura dá uma ideia da proporção da exploração e permite-nos perceber que não foi o génio de Steve Jobs, por grande que fosse, o que o tornou rico.

Face à voracidade da concorrência mundial, a exploração do trabalho na China tem mesmo vindo a agravar-se. Enquanto em 1990 cerca de 61% da riqueza produzida na China era distribuída em rendimentos do trabalho, essa percentagem tinha descido para 53% em 2007. Para efeitos de comparação, nos turbo-capitalistas EUA a percentagem era de 66%. Não admira, portanto, que as famílias chinesas não tenham como oferecer às suas crianças os brinquedos da Mattel e da Disney que muitas famílias ocidentais compraram no Natal(5).

Quem mais beneficia com a redução da população chinesa à condição de mão-de-obra barata são as multinacionais sediadas nos EUA, na União Europeia ou no Japão. Estas empresas beneficiam duplamente da exploração laboral na China: de um lado, porque conseguem baixar o custo de produção dos seus produtos e assim baixar os preços e aumentar as margens de lucro, de outro, porque conseguem comprimir o aumento dos salários no seu país de origem, pela descida do custo de vida e pela chantagem da deslocalização. Não surpreende, portanto, que estas empresas tenham impulsionado a liberalização do comércio mundial, como não surpreende que estas empresas se tenham oposto à implementação de um código laboral mínimo na China, em 2008(6).

Durante décadas, ouvimos representantes de empresas e governos ocidentais prometer que a abertura da China ao capitalismo globalizado traria mais liberdade, mais democracia e melhor nível de vida para a sua população. Hoje, é extremamente claro que aconteceu o oposto. Se um código de trabalho mínimo acabou por ser aprovado, se em algumas fábricas os salários têm aumentado e se os abusos às leis laborais têm sido minimamente combatidos, isso deve-se à luta heróica e vitoriosa de tantos/as trabalhadores/as chineses/as que se têm revoltado, ocupando fábricas e organizando protestos.

A luta pelos direitos do trabalho na China oferece-nos três grandes lições para o futuro. A primeira é que é possível resistir e lutar por uma vida melhor mesmo quando o contexto é extremamente adverso a mobilizações populares. A segunda é que a perpetuação do consumismo nos países ricos depende fortemente da escravização de populações inteiras. E a terceira é que a luta contra a exploração do trabalho na China está interligada com a mesma luta em Portugal – nós lutamos pelos seus direitos, eles/as lutam pelos nossos. Agora que sabemos que a EDP será entregue em parte a uma empresa detida pelo estado chinês, convém não nos esquecermos destas lições.

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Notas:
1-
http://www.aljazeera.com/programmes/slaverya21stcenturyevil/2011/10/2011... ml
2 – Segundo inquérito da China Labor Watch: http://www.chinalaborwatch.org/pro/proshow- 149.html
3 – Lista de salários mínimos por região:
https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_minimum_wages_in_China_(PRC)
4 – Notícia no New York Times: http://www.nytimes.com/2010/07/06/technology/06iphone.html? pagewanted=1
5 – Ver o relatório da associação de Hong Kong Students and Scholars Against Corporate Misbehavior: http://sacom.hk/archives/912
6 – Ver http://www.fpif.org/articles/labor_rights_in_china

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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