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Porque sou vegetariano

Quero hoje, num registo mais pessoal que o costume, deixar uma resposta a esta pergunta.

Há cerca de seis anos, tornei-me vegetariano. Esta opção de vida ainda é pouco comum em Portugal, pelo que é corrente pessoas conhecidas perguntarem-me o porquê de ter tomado a decisão de deixar de consumir carne, peixe e produtos animais. Quero hoje, num registo mais pessoal que o costume, deixar uma resposta a esta pergunta.

Permitam-me, antes de começar, deixar um aviso importante. Não é minha intenção hostilizar quem não é vegetariano. De facto, conheço muitos/as brilhantes revolucionários/as que obtém as forças de que necessitam na sua luta por um mundo melhor comendo produtos de origem animal. Entendam, portanto, o argumento que se segue não como uma acusação contra os/as "omnívoros" mas antes como uma justificação para um ponto algo ousado que pretendo fazer: o de que um mundo vegetariano será um mundo melhor.

A primeira razão para ter decidido não comprar mais carne ou peixe foi a preocupação com os direitos dos animais. Se me posso alimentar e obter a energia de que necessito sem consumir produtos que envolvem sofrimento de seres vivos, então não vejo qualquer razão para não o fazer1. Ou seja, quando menciono "direitos dos animais" estou na realidade a falar da nossa obrigação moral de não causar sofrimento desnecessário a seres sencientes2.

A partir de certa altura na minha vida, apercebi-me que não podia justificar a incoerência entre esta posição ética que subscrevo e os meus hábitos alimentares. Fui então gradualmente deixando de comer carne, peixe, ovos e lacticínios. Deixei também de consumir cosméticos e vestuário que use produtos de origem animal, e assim me tornei um vegano.

Ao longo dos tempos, tive muitas surpresas, a maioria das quais positivas. Foi muito estranho descobrir que a vasta maioria dos produtos alimentares que encontramos à venda contém produtos de origem animal, embora não seja difícil encontrar produtos "vegan", inclusive entre as marcas mais baratas. Foi também estranho, embora positivo, descobrir formas de cozinhar os vegetais que antes não comia de acordo com os meus gostos culinários, numa constante jornada gastronómica. Mas a maior surpresa veio quando decidi que não ia deixar de lado a minha dieta nem quando como fora de casa e descobri que até nos locais mais remotos, em tascas e restaurantes típicos, consigo convencer o/a cozinheiro/a a fazer-me um excelente prato vegetariano, mesmo sem estar no menu.

A segunda razão para ter deixado de lado do meu prato qualquer produto que não seja de origem vegetal foi a preocupação com a crise ecológica que vivemos. A pecuária está hoje entre as principais causas dos principais problemas ecológicos (erosão dos solos, alterações climáticas, poluição da água, perda de biodiversidade e desflorestação), um facto já reconhecido pela comunidade científica e pela ONU3. Isto não significa, obviamente, que o impacto ecológico da produção de vegetais seja desprezível, particularmente quando provêm da agricultura intensiva. Mas a diferença a nível da utilização de recursos (como água, terra ou combustíveis fósseis) e das emissões de poluentes entre a produção de uma caloria de proteína de origem animal ou de origem vegetal é tão significativa que a superação da crise ecológica exige, como condição necessária, uma redução considerável no consumo de carne, ovos e leite.

O mesmo se pode dizer do consumo de peixe. Não é novidade para ninguém, creio, que o peixe está a desaparecer rapidamente dos oceanos, arrastado pelas enormes redes dos navios-fábrica de grandes empresas (conjuntamente com golfinhos, tartarugas e outros animais). Um estudo publicado na Science estimava que em 2048 todas as espécies de peixe e animais marítimos consumidos por humanos estarão em risco de colapso. A solução para este problema não é tão simples, portanto, como consumir as espécies em menor risco. Por outro lado, a aquacultura não representa uma alternativa viável à pesca, já que a produção de um quilo de peixe em aquacultura implica o uso de dois a vinte quilos de peixe capturado no mar para rações.

Resumindo, preocupações éticas com o futuro do planeta que habitamos e com os animais que partilham o planeta connosco levaram a que decidisse não dar mais do meu dinheiro a indústrias que lucram com o uso de animais. Mas não encaro esta opção meramente como um acto individual. Como qualquer acto político, apenas faz sentido quando enquadrado numa perspectiva mais abrangente de transformação social. Se esta modesta contribuição para o debate levar a que alguns/algumas camaradas de luta se juntem a mim na defesa de um mundo livre de sofrimento, ganhei o dia.

Che Guevara, no seu estilo único, afirmou em tempos: "Deixe-me dizer-lhe, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor...". Apetece-me responder que, de facto, Che era tudo menos ridículo por pensar assim. Mas acrescentaria que este amor deve ser estendido não só a todos os humanos mas também aos animais não-humanos. Deixem-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o amor é o único recurso inesgotável do mundo.

1 Uma pequena explicação científica: os estudos realizados por nutricionistas consideram, unanimemente, que os produtos de origem animal são um componente facultativo de uma dieta equilibrada.

2 Outra pequena explicação científica: um ser senciente é um animal capaz de sentir sofrimento e prazer. Todos os mamíferos são sencientes, assim como os peixes, os polvos e os caranguejos. Os insectos, por exemplo, não são sencientes, e as plantas não sentem qualquer tipo de dor.

3 Ver, em especial, o relatório da FAO "Livestock's long shadow" [ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/010/a0701e/a0701e00.pdf]

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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