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O que muda na lei contra o assédio no trabalho?

A nova lei traz alterações relevantes, mas deixou pelo caminho um aspeto essencial: o alargamento da inversão do ónus da prova a todas as situações de assédio, proposto pelo Bloco e PCP.

Terminou esta semana o debate e a votação na especialidade da nova lei de combate ao assédio no trabalho. Durante quatro meses, foram ouvidas entidades públicas (ACT, CITE), sindicatos, associações patronais, juízes, investigadoras, médicos, juristas. A questão de partida era simples: sabendo-se, pelos estudos mais recentes, que um em cada seis trabalhadores (ou seja, centenas de milhar) diz já ter sido vítima de assédio (sexual ou moral) no trabalho, porque razão as queixas não ultrapassam, em cada ano, a dezena? Constatada esta discrepância, é evidente que o quadro legal existente até hoje não está a permitir que as pessoas se sintam protegidas e exerçam os seus direitos. A fragilidade da lei não explica tudo, nem as alterações na lei resolvem tudo. Mas o desafio era óbvio: como pode ela ser mais eficaz no combate a estas formas de terror no trabalho?

Era expectável que não houvesse consenso. As entidades patronais posicionaram-se ao longo do processo contra alterações legislativas que dessem mais garantias aos trabalhadores e que as responsabilizassem de forma mais consistente. Afinal de contas, ao longo dos últimos anos, várias empresas têm-se servido de processos de assédio (veja-se o esvaziamento de funções, as pressões para as pessoas rescindirem, a utilização das cláusulas de mobilidade geográfica e funcional e de todos os subterfúgios legais para constranger os trabalhadores que está em curso na PT/MEO) como uma estratégia para se desembaraçarem de trabalhadores, levando-os muitas vezes a sair pelo seu pé para escapar a um quotidiano de tortura psicológica. As organizações sindicais, pelo contrário, insistiram na necessidade absoluta de facilitar a prova, proteger quem denuncia e reforçar a fiscalização e as sanções às empresas assediadoras.

No campo político, o mesmo contraste. PSD e CDS não apresentaram uma única proposta para combater o assédio e opuseram-se às iniciativas em debate. Bloco, PS, PCP e PAN apresentaram medidas diversas, algumas muito diferentes, para responder ao fenómeno.

O que mudou e o que não mudou

A lei que já foi votada no grupo de trabalho e será confirmada no Parlamento na próxima semana traz alterações relevantes, muitas delas resultantes do debate e do contributo de organizações e especialistas. Um aspeto essencial ficou pelo caminho: o alargamento da inversão do ónus da prova a todas as situações de assédio, proposto pelo Bloco e PCP. O que se pretendia era facilitar a prova, hoje muito difícil nos casos de assédio não discriminatório (quando não há um trabalhador na mesma condição em relação ao qual se possa invocar discriminação). Ao trabalhador vítima de assédio caberia indicar os factos, no empregador repousaria a responsabilidade de provar que eles não tinham a intenção e o efeito de assédio moral. Esta ideia, contudo, foi chumbada por PS, PSD e CDS.

Mas aprovaram-se alterações da maior importância, resultantes de uma proposta da autoria conjunta do Bloco, PS e PAN (feita após as audições), que o PCP também votou favoravelmente. As mudanças mais importantes são cinco:

1) Clarifica-se na lei a proibição de todos os tipos de assédio. Além disso, um pormenor como dizer-se “assédio no trabalho” e não “no local de trabalho” pode fazer diferença: afinal de contas, o assédio laboral faz-se também, por exemplo, por dispositivos de comunicação a distância (como quando as pessoas são humilhadas por e-mail ou assediadas por telefone).

2) Estabelecem-se mecanismos de proteção de quem faz denúncias ou aceita ser testemunha, proibindo a empresa de lançar processos disciplinares internos contra os trabalhadores como mecanismo de retaliação contra quem se queixa ou aceita testemunhar.

3) Passam a considerar-se abusivos os despedimentos feitos na sequência de uma denúncia de assédio, impedindo os patrões de recorrerem a estes expedientes.

4) Imputam-se às empresas todos custos relacionados com os danos que infligem na saúde dos trabalhadores, fazendo com que as doenças resultantes de assédio (por exemplo, o burn out ou a depressão...) fiquem abrangidas pelo regime de reparação de danos que atualmente já existe para as doenças profissionais e os acidentes de trabalho.

5) Passa a ser obrigatória a publicação de uma lista negra das empresas condenadas por assédio, no site da Autoridade para as Condições de Trabalho.

O conjunto destas alterações está muito longe de resolver tudo. Para além da lei escrita, há a lei do silêncio que é preciso quebrar em relação a estas situações, há a precariedade que impõe o medo e que inibe as denúncias, há a dificuldade da prova, nomeadamente em relação a essas formas de pressão prolongada e mais ou menos dissimulada. O combate ao assédio precisa de uma mudança profunda que vá a todas essas dimensões. Mas não nos enganemos: demos um passo na direção certa. E, tendo em conta o que foram os últimos anos deste país no campo laboral, isso já não é pouco.


Artigo publicado no site do Expresso, 14/7/2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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