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Mulheres de Abril: Testemunho de Maria Machado

Despedi-me da minha mãe, do meu pai e da irmã com o coração apertado. Não sabia por quanto tempo seria a separação. E não podia adivinhar que nesse mesmo ano, em Agosto, seriam presos pela PIDE. E assim entrei eu na organização das “acções especiais”. Por Maria Machado.
Esta foto foi apreendida pela PIDE, aquando da prisão dos pais e irmã de Maria Machado, e distribuída pelos postos de fronteira e polícias.

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


 

Entrei para a clandestinidade aos 11 anos

Nasci em 1949, em Vale de Vargo, uma pequena aldeia entre o rio Guadiana e a raia de Espanha.

Quase toda a terra estava na posse de grandes latifundiários. A vida era muito dura, sobejava o desemprego e a fome. Quando era criança, lembro-me de que quase toda a gente vivia mal, havia pouco trabalho. No Verão havia as ceifas, no Inverno a apanha da azeitona. Nas ceifas, de foice em punho e os três dedos da mão esquerda protegidos pelos canudos, tinha-se que enfrentar a “calma”, isto é, o sol abrasador. Na apanha da azeitona tínhamos o frio de rachar e o chão coberto por uma película de gelo, o “caramelo”, tolhia as mãos e enregelava até aos ossos.

Grande parte das pessoas da aldeia passava fome.

Volta não volta ouvia os meus pais comentarem a prisão desta ou daquela pessoa, acrescentando que qualquer dia também calhava ao meu pai.

Lembro-me particularmente de uma manifestação de trabalhadores agrícolas em Vale de Vargo. As pessoas levavam bandeiras pretas. Recordo de os meus pais me terem dito que as pessoas estavam a protestar, porque tinham fome, só tinham trabalho uns míseros meses por ano, e nem todos.

A Guarda chegava e prendia

Em 1954, numa véspera do 1º de Maio, a GNR foi à nossa casa e prendeu o meu pai. Nem mandato de prisão nem qualquer ordem judicial. A Guarda chegava e prendia. Ficou preso 6 meses. Era castigo preventivo contra a previsível manifestação do 1º de Maio. Em casa tínhamos o "Avante" e outros papéis do Partido Comunista, é certo, mas bem escondidos.

Vivi em Vale de Vargo até aos 8 anos com os meus pais e irmãs. Os meus pais entretanto passaram a viver em semiclandestinidade, e levaram as minhas irmãs. A Úrsula, porque já terminara os 4 anos de escolaridade obrigatória, e a Maria José, porque ainda não tinha idade para ir à escola. Fiquei com os avós maternos e tios que trabalhavam num “monte”, em Vila Azedo, perto de Beja.

Frequentei a escola de Nossa Senhora das Neves. Em Vila Azedo juntava-me a algumas colegas e íamos a pé para a escola, longe três quilómetros.

Para mim, que era uma criança, o que mais me entristecia era estar separada dos meus pais. Só muito espaçadamente, aparecia o pai ou a mãe inesperadamente para nos ver. Muitas vezes dava por mim a pensar: que bom que seria que quando chegasse ao monte estivesse lá um deles, pois os dois eu sabia que era impossível. As regras da clandestinidade eram muito rígidas e irem lá os dois ao mesmo tempo era interdito.

Em 1960, tinha 11 anos, juntei-me aos meus pais e à minha irmã mais velha viviam eles clandestinamente em Odivelas. Chegámos aqui ao cair da noite, onde viviam numa parte de casa. Ficámos lá pouco tempo, só o necessário para eles alugarem uma casa com melhores condições para o trabalho que a partir daí iríamos desenvolver, trabalhar com uma tipografia.

Iniciei aí, eu também, a minha clandestinidade. Dela e das suas rigorosas privações já tinha sido informada: não podia ter uma vida como as outras crianças e não podia ir brincar com elas porque a polícia podia prender os pais. Mas fui com gosto porque isso representava poder estar com os meus pais.

Passadas poucas semanas, mudámos para a casa onde imprimíamos o Avante, O Militante, comunicados e outros materiais do PCP. Era esse o trabalho dos meus pais, e que passou a ser o meu também, ao ajudá-los.

Uns tempos depois, a minha irmã Úrsula partiu para a União Soviética, onde tirou o Curso Superior de Música no Conservatório de Moscovo.

Quem nos ensinou a trabalhar com a tipografia foi o Manuel da Silva, o funcionário do PCP que mais anos viveu na clandestinidade, perto de 30 anos. Ali usava outro nome, e para mim era o meu tio. Mesmo depois do 25 de Abril, quando o encontrava na sede do PCP, muitas vezes o tratava por tio.

Por razões conspirativas nossas ou de outros camaradas fomos obrigados a mudar de casa com frequência. Eram momentos sempre de grande tensão.

A chegada da minha irmã Zezinha foi mesmo uma coisa muito boa. Deixei de estar sozinha. Ensinámo-la a trabalhar na tipografia, a nossa mãe ensinava-nos a fazer crochet e brincávamos as duas.

Aqui, apesar dos cuidados que sempre tínhamos, era mais fácil ir até à rua brincar, até porque se situava numa zona retirada do centro de Rio de Mouro. Tinha um quintal, criámos coelhos e galinhas e plantámos couves e alfaces.

Em 1965 deu-se uma nova mudança, agora para a Idanha, perto da Serra da Carregueira.

A direção do PCP ofereceu-me a oportunidade de ir para a URSS

Em 1966, a direção do PCP ofereceu-me a oportunidade de ir à URSS frequentar o curso da Escola Superior do Konsomol, nos arredores de Moscovo. Aceitei. Era uma oportunidade para melhorar a minha formação cultural e política. Era uma oportunidade de conhecer Moscovo e até lá deslumbrar-me com Paris, Zurique, Praga. E ia voltar a ver minha irmã Úrsula que já não via há anos, mas que em nossa casa todos ouvíamos cantar através da emissão clandestina da Rádio Portugal Livre. Como artista, no Portugal depois de Abril, viria a usar o nome artístico de Luísa Bastos.

No Porto, depois do encontro com um camarada desconhecido no local indicado, com senha e contrassenha, levaram-me para uma casa nos arredores da cidade. Por vezes, pediam-me que fechasse os olhos para não poder identificar onde estava. Ali ficaria uns dias antes da passagem clandestina da fronteira. Depois de muito andar, chegámos e apanhei um choque, ao abrir a porta estava a minha tia Luzia, também na clandestinidade, que eu não via há muitos anos e não me reconheceu. E com ela estava o seu filho, um lindo rapazinho loiro, o Eduardo.

Como não me podia denunciar não disse: olha a minha tia! Mas fiquei sem palavras.

No dia seguinte, mostrei-lhe um caderno de sinónimos de Francês que andava a estudar, ficou muito espantada e disse: mas eu conheço esta letra. Rapidamente concluiu que a letra era a mesma das cartas que ela recebia da minha mãe. Só por este pormenor é que ela descobriu quem tinha em casa e então abraçámo-nos e choramos de alegria. Ninguém no aparelho do partido que me conduziu aquela casa a caminho da partida para a fronteira imaginava que ia levar a sobrinha à tia.

Depois de passar por Paris, Zurique e Praga cheguei finalmente a um dos aeroportos de Moscovo onde estavam uns soviéticos à minha espera que falavam português e me encaminharam para a Escola Superior do Konsomol em Vichnyki.

Quando lá cheguei era a altura de uns partirem e outros chegarem. Uma parte deles chorava nas despedidas, grandes laços afectivos se haviam estabelecido e agora iam ser quebrados provavelmente para nunca mais se verem nem conhecerem o seu destino.

Havia estudantes de todo o mundo, de origens e vidas muito diferentes. Uns vinham da luta de guerrilha: Moçambique, Guiné Bissau, Guatemala, outros eram operários ou estudantes universitários. Havia soviéticos de várias etnias e costumes, russos, ucranianos, mongóis, cossacos, uzbeques. E havia finlandeses, alemães, franceses, checos, ou mexicanos, chilenos, congoleses, etíopes, e do Bangladeche com nomes de António e José, herança portuguesa?

Estudávamos Economia Política, Filosofia, história do movimento sindical mundial, do movimento comunista internacional, história da URSS e língua russa.

Na escola já estavam, há uns dias, dois portugueses: o Carlos, que afinal era Raimundo, e a Ana, que na realidade se chamava Mariana.

A par das aulas, cada país organizava sessões de divulgação da cultura e da situação política e social do seu país.

Os sábados eram ocupados de manhã com seminários onde era avaliada a aprendizagem da semana, e à noite tínhamos festa e baile no grande salão de convívio.

Frequentámos o que havia de melhor na ópera, no ballet, em concertos sinfónicos em Moscovo com muitos dos mais célebres artistas mundiais. Visitámos também Leninegrado hoje, como inicialmente, S. Petersburgo e cidades turísticas próximo de Moscovo. E na viagem de fim do curso fui à Sibéria e passeei pelo Lago Baikal. O Raimundo é que ficou cheio de inveja porque teve de regressar a Portugal antes da viagem e tanto mais quanto fora ele que conseguira um passeio tão distante.

- Onde é que os meus “meninos” querem ir no fim do curso? - Interrogava-nos a nossa intérprete e amiga Galina.

- À Sibéria! - adiantou Raimundo - às grandes barragens de Bratsk e Krasnoiarsk e justificava com ter estudado engenharia electrotécnica.

- Ai Carliucha (Carlinhos) isso é muito longe, os camaradas não vão aceitar! Mas sei lá, talvez, como é para os camaradas portugueses!...

Antes do fim do curso eu e o “Carlos”, já namorávamos há uns meses, combinámos juntar-nos, na clandestinidade, no regresso a Portugal que ocorreu em Agosto de 1967.

E assim entrei eu na organização das “acções especiais”

Em Agosto de 67, regressei a casa dos meus pais. A 7 de Março de 1968 deixei a família para me juntar com o Carlos, isto é, o Raimundo, e morar na Rua Veloso Salgado à beneficência. Despedi-me da minha mãe, do meu pai e da irmã com o coração apertado. Não sabia por quanto tempo seria a separação. E não podia adivinhar que nesse mesmo ano, em Agosto, seriam presos pela PIDE.

 


Informação (com dados incorrectos) escrita pela PIDE no verso da foto de Maria Machado, que foi apreendida aquando da prisão dos seus pais e irmã.

 

E assim entrei eu na organização das “acções especiais”.

Uns meses depois, viemos a saber que um dos mais temidos quadros da PIDE – José Gonçalves - morava no quarteirão do lado. Mudámos de casa. Em 1969, estávamos a morar na Estrada dos Arneiros, em Benfica, onde albergamos Francisco Miguel, durante um mês e meio enquanto não arranjou casa própria e companheira. Encontrava-se no estrangeiro desde a célebre fuga da prisão de Caxias num mercedes que fora de Salazar, oferta do 3º Reich, e estava então ao serviço da prisão, em dezembro de 1961. Insistiu que queria voltar a Portugal e participar nas “acções especiais”. Chico Miguel já passara 22 anos de prisão política muitos dos quais no campo de concentração do Tarrafal.

Em 1970, alugámos então uma vivenda à saída de Alcabideche no concelho de Cascais. Foi aqui, numa das reuniões do comando central das “acções especiais”, que a organização ganhou o nome de Acção Revolucionária Armada – ARA. Estávamos em vésperas da primeira sabotagem – a do navio Cunene – havia então que, após a acção, emitir um comunicado e a organização tinha de ter nome. Na reunião seguinte, Raimundo sugeriu três nomes e o primeiro foi aceite pelo Jaime Serra e o Chico Miguel - os outros dois membros do comando central – e assim foi baptizada a ARA.

Nas reuniões do Comando Central eu também participava mas apenas na parte política. O meu papel era o de “dona de casa” e zeladora pela sua segurança, como sucedia com quase todas as mulheres clandestinas do PCP, mas aqui, na ARA, uma organização com alguma autonomia, participava nos reconhecimentos para ações futuras, ajudava na preparação dos engenhos e seus disfarces, na vivenda da Fresca (Arruda) que nos servia de laboratório, e também preparava e imprimia postais e outros materiais de propaganda das ações da ARA.

No dia 1º de Dezembro de 1969, fazia eu 20 anos, nasceu a minha filha e quatro anos depois o filho. Os filhos nunca constituíram uma dificuldade para a nossa vida e trabalho clandestino. Amenizavam os dias mais cinzentos e davam-nos uma enorme alegria.

A nossa clandestinidade terminou em 1974, em Odivelas, para onde nos mudámos em Abril de 1971, depois do ataque à base Aérea de Tancos, e onde ficámos até meados de 2005. Depois do 25 de Abril informámos que a Maria Helena e o José Lopes da Silva eram afinal Maria Machado e Raimundo Narciso. Ainda hoje são nossos amigos os vizinhos de Odivelas.

Mais concretamente, a minha clandestinidade acabou no dia 1º de Maio ao participar na grande manifestação do 1º de Maio e depois com a visita aos meus pais, que não via desde 1968. Um dia da maior alegria.


*Maria Machado Castelhano Pulquério
Odivelas, 2017-04-04

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