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Os problemas da “geringonça”

Os partidos à esquerda do PS precisam de manter uma agenda política independente, cada vez mais em confronto consequente com este governo.

Tal como em 1974 Portugal introduziu na Europa a fase da queda das ditaduras (Espanha e Grécia seguiram o exemplo), agora o nosso país abriu as portas a uma inovação política com a criação de um governo do PS baseado em acordos com partidos à sua esquerda (Bloco de Esquerda, PCP e Partido Ecologista Os Verdes) que não participam nele, retirando a direita do poder.

A verdade é que as experiências de coligação ou de alternância entre partidos social-democratas e partidos conservadores para executarem uma mesma política de austeridade está a revelar-se desastrosa para estes últimos, como se viu nas eleições holandesas: o partido de Dijsselbloem perdeu 19 lugares no parlamento e arrisca-se a ser irrelevante na política daquele país. Já tinham acontecido coisas idênticas com a crise do PASOK na Grécia, com o PSOE no estado espanhol e veremos o que está a acontecer com o Partido Socialista Francês (PSF), profundamente dividido em relação ao governo do presidente François Hollande, incapacitado de se recandidatar à presidência da república perante um cenário provável de humilhação.

Dito isto, vale a pena fazer o balanço desta experiência de governação em Portugal com António Costa na liderança e perceber os seus limites e os seus riscos.

O primeiro problema decorre do crescimento da influência do PS à custa da hecatombe da direita e sem descolagem de Bloco e PCP. De acordo com as sondagens aquele partido estará próximo da maioria absoluta, colocando em risco a solução política em exercício. Mesmo que formalmente a “geringonça” se mantivesse após a eventual vitória do PS, e António Costa tem dado a entender essa intenção, a natureza do relacionamento entre os partidos que a compõem mudaria substancialmente, tornando irrelevante o contributo que o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista e o Partido Ecologista Os Verdes poderiam dar para influenciar a governação. A propensão do PS para entendimentos conservadores é sobejamente conhecida, faz parte da sua natureza, como ficou claro no episódio da diminuição da TSU dos patrões e agora com a venda do Novo Banco.

Aliás, a crise de liderança da União Europeia, bem evidente na vacuidade da declaração a propósito dos 60 anos do Tratado de Roma, mostra que neste momento não há um projeto inquestionável e uma direção para o aplicar. Não só o Brexit enfraqueceu a arrogância da retórica alemã, como ainda o crescimento da extrema-direita e as pressões eurocéticas tornam mais discutíveis as tenazes que estrangulam a iniciativa política de cada país. Num cenário de abrandamento do rigor de algumas metas que decorrem da aplicação dos tratados, António Costa pode ter uma segunda parte da legislatura mais facilitada para construir uma maioria absoluta nas próximas legislativas.

O segundo problema é que perante o apagão de Passos Coelho e do PSD, Marcelo também ocupou o espaço vazio e funciona como aliado e contrapoder junto de António Costa. Na realidade, neste momento, o primeiro-ministro governa tanto ou mais em articulação com a presidência do que com os partidos à sua esquerda. E Marcelo vai construindo uma espécie de “governo sombra” que não se coíbe de fazer apelos públicos em matérias fundamentais que cabem exclusivamente ao governo. Vejam-se iniciativas como uma conferência sobre relançamento do investimento privado, que mobilizou economistas da área da direita, ou a publicidade à travagem das alterações nos conteúdos de certas disciplinas anunciadas previamente pelo Ministro da Educação.

O terceiro grande problema é o risco de acomodação dos partidos à esquerda do PS a uma situação de dependência política em relação ao governo, que hipoteque a sua identidade e paralise a sua iniciativa. A popularidade da “geringonça” resultou dos contributos originais que sobretudo Bloco de Esquerda e Partido Comunista ofereceram à governação e à sua promessa de resistência perante os cenários de cedência às políticas da União Europeia. O cretinismo europeísta que persegue António Costa impede-o de encontrar as respostas mais eficazes para os grandes problemas do país, como tem ficado visível com a sua recusa em levantar de forma unilateral a ideia de reestruturação da dívida pública. Os partidos à esquerda do PS precisam de manter uma agenda política independente, cada vez mais em confronto consequente com este governo, se quiserem continuar a ter relevância.

O último problema é a perigosa paralisia das lutas dos trabalhadores e da capacidade reivindicativa criadas pela expetativa em relação ao que este governo pode oferecer. Só um movimento social forte e mobilizado pode forçar melhorias na vida da grande maioria da população. A confrontação com a atual legislação do trabalho, instalada no tempo da Troika e de Sócrates, é só um dos casos mais flagrantes da batalha política global que urge desencadear. Sem esquecer exemplos como a luta pela melhoria dos serviços públicos ou o aumento das pensões mínimas, que exigem despesa por parte do Estado, diariamente bloqueada pela necessidade de fazer face aos juros da divida pública e aos constrangimentos dos tratados da União Europeia.

Sobre o/a autor(a)

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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