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Guerra Colonial: “O Império foi uma construção ideológica do salazarismo”

O escritor, investigador e militar de Abril, Carlos Matos Gomes, afirma em entrevista ao esquerda.net que o colonialismo português se alicerçou em falsas glórias do passado histórico e que nunca passou de uma “subconcessão do colonialismo inglês”. Por Pedro Ferreira.
"O verão de 1973 marca o início da viragem política que irá desembocar no golpe militar do 25 de Abril", afirma o escritor. Foto de Veríssimo Dias
"O verão de 1973 marca o início da viragem política que irá desembocar no golpe militar do 25 de Abril", afirma o escritor. Foto de Veríssimo Dias

Porque é que assina os seus livros de ficção como Carlos Vale Ferraz ?

Comecei a publicar em 1982 e como estava no ativo entendi que não devia misturar a minha condição de militar com a de escritor. Assim, posso dizer que segui o que muitos fizeram como, por exemplo, o Miguel Torga [pseudónimo de Adolfo da Rocha] que não gostava de assinar as receitas médicas com o mesmo nome que surge nas suas obras.

Mas enquanto investigador usa o seu nome.

São situações diferentes e eu gosto de separar as minhas investigações históricas sobre o colonialismo dos romances de ficção.

Considera-se mais um investigador ou um romancista?

Penso que terei publicado até hoje dez livros e à medida que vou trabalhando vou pensando no que já fiz anteriormente e concluo que escrevi mais sobre a questão colonial portuguesa e como é que as pessoas se relacionaram com aquilo que hipoteticamente foi um Império.

Hipoteticamente...

Os portugueses interiorizaram-no como um Império sobretudo no século XX devido essencialmente à política colonial delineada por Salazar.

E não foi um Império?

A relação dos portugueses com esses territórios tem uma característica marcadamente de posse. Mas é preciso dizer que esse passado que glorifica a grandeza do Império e das Descobertas nunca teve correspondência com a realidade, foi uma construção que persiste ainda no imaginário de muita gente. Se quiser, podemos utilizar a imagem do rico que perde toda a sua fortuna mas fica indissociavelmente ligado às pratas e aos palácios que possuiu mas que já não passa de um pobre.

O falso aristocrata?

É se quiser a miséria dourada dos aristocratas que têm sempre mais estilo e vaidade do que propriedade.

Passadas mais de quatro décadas sobre o fim da Guerra Colonial ainda há nostalgia?

Essa nostalgia permanece não pela guerra mas pela grandeza perdida e atinge não só a geração que viveu esse tempo como também as seguintes porque estas ouvem histórias muito falaciosas e plenas de fantasias sobre um país que era enorme. Vão ter acesso uma História não crítica relacionada com a suposta capacidade que Portugal teve e continuaria a ter para ser um país colonial.

E não possuía essa capacidade?

Portugal não podia ter colónias porque não tinha indústria. Por isso, essa ideia não tem qualquer correspondência com a realidade mas como sabemos a nostalgia é feita disso.

Podemos concluir que esse passado de glória é uma mistificação?

Foi como já referi uma construção tal como o foram a descoberta do caminho marítimo para a Índia e tudo aquilo que associamos a Afonso de Albuquerque ou ao ouro do Brasil. Curiosamente estas ideias mantêm-se vivas porque todos os regimes têm potenciado e mantido esse imaginário.

Porquê?

A História crítica faz muito pouco para desconstruir essas ideias e é isso que eu pretendo contrariar nos meus livros. No fundo, trata-se de colocar frente a frente esse imaginário com a realidade.

E quais são os resultados desse confronto?

O jovem que saía de Portugal com 20 ou 21 anos para ir fazer a guerra convencido que ia defender aquilo que era nosso, isto é, o grande Império, chegava a África e era confrontado com muitas situações de violência colonial, muita miséria e exploração e níveis de desenvolvimento muito baixos.

E começava a questionar-se a partir dessa realidade?

É esse confronto que leva a que a geração que fez a guerra seja também aquela que mais rapidamente se “despediu” de África.

E a sua descolagem em relação ao processo colonial acontece também a partir desse contacto com a realidade?

A minha ideia foi sempre...eu era militar e estes cumprem missões e essa foi a ideia que me acompanhou. Obviamente que sabia que não ia defender nenhum Império nem tão pouco resolver um problema mundial.Simplificando, posso dizer que tinha consciência que existia uma situação [a guerra] que precisava de ser resolvida. Esse facto acompanhou-me sempre e cheguei a dizê-lo aos meus oficiais que até me tinham proposto para continuar em Moçambique numa unidade bastante conceituada.

E qual foi a sua decisão?

Disse simplesmente que a minha missão ali tinha terminado e que não era eu que ia ganhar Moçambique para Portugal.

Não era uma tomada de posição perigosa?

É preciso ter em linha de conta que os exércitos combatem pelos Estados e pelas políticas dos Estados, não combatem pela História nem pela Pátria, que é uma ideia completamente peregrina.

A grande questão não passava por defender a Pátria ou o Império mas saber se o Estado que eu defendia tinha legitimidade para me impor não só a mim como à sociedade portuguesa aquela guerra e também encontrar uma solução para a resolver

Mas não é essa a ideia que o poder político mesmo em democracia passa para a opinião pública.

Os exércitos nacionais são sempre criação dos Estados nacionais. Eu tive sempre essa noção e fui sempre um militar dentro dessa perspetiva.

Não partiu para a guerra para salvar a Pátria?

Não. A grande questão não passava por defender a Pátria ou o Império mas saber se o Estado que eu defendia tinha legitimidade para me impor não só a mim como à sociedade portuguesa aquela guerra e também encontrar uma solução para a resolver.

 

O regime não quis ou não conseguiu encontrar essa solução?

Antes disso, importa dizer que o problema colonial português acabou por se encaminhar para os chamados grandes conflitos, as guerras prolongadas que dão sempre origem a um problema que é o de saber como é que uma sociedade suporta uma guerra interminável, um estado de violência continuado sem uma solução para lhe pôr termo.

Essas interrogações estão refletidas nos seus livros, nomeadamente no “Nó Cego” que é considerado um dos romances mais importantes sobre a Guerra Colonial portuguesa.

E não só embora nesse livro a questão esteja colocada com muita premência que começa aliás com o título porque verdadeiramente há um momento em que o fim da guerra se assemelha a um nó muito difícil de desatar e eu como sou agnóstico e não me confesso escrevo o que, deva dizer-se, é um processo mais lento e difícil do que a confissão.

Na sua opinião ainda há coisas por dizer sobre este período da História do país?

Penso que sim até porque com o tempo e a experiência que vamos adquirindo ganhamos novas grelhas de interpretação e assim conseguimos encontrar aspetos que nos permitem continuar a analisar a realidade a partir de outros prismas e reinterpretar determinados acontecimentos.

A Guerra Colonial é suscetível de interessar as gerações que já não se cruzaram com ela?

Há um ditado africano que diz que a memória passa de avós para netos. Penso por isso que estes vão sentir curiosidade em ir aos baús dos seus avós para repegar neste momento da História e continuar a estudá-la ou a ficcioná-la até com mais sofisticação o que não foi possível para nós porque a vivemos de ”chapa” e tivemos que encetar uma análise muito em cima dos acontecimentos.

Mas atualmente, o assunto está esquecido.

Isso é compreensível porque a nova geração de escritores está preocupada com outros assuntos e a viver outros problemas que nada têm a ver com a guerra. Além disso, já não têm de legitimar nada, friso legitimar e não justificar, sentem-se cidadãos de pleno direito num mundo complexo mas muito evoluído. Os seus livros expressam as preocupações e perplexidades do tempo presente como os sentimentos, as questões ligadas à sexualidade, a ambição, a depressão, em suma, aquilo que está na ordem do dia.

Voltando atrás, pergunto-lhe porque é que o regime não avançou para a descolonização optando por se enredar numa série de equívocos que contribuíram para a sua queda?

O problema colonial português não tinha solução. Historicamente ele fez-se para tirar matérias-primas do continente africano para depois serem transformadas na Europa.

Podemos assim afirmar que as políticas coloniais são fruto da máquina a vapor porque criou uma energia disponível que nunca tinha existido permitindo que essa exploração fosse feita de uma forma rápida e eficaz.

O problema colonial português não tinha solução. Historicamente ele fez-se para tirar matérias-primas do continente africano para depois serem transformadas na Europa

Portugal não era uma potência industrial e por isso aquilo que podia fazer era ter concessões e servir de intermediário concessionando os seus territórios às chamadas grandes potências que exploravam as matérias-primas transportando-as para a Europa.

Em resumo, Portugal só podia ter territórios coloniais desempenhando um papel de intermediário e assim não podia descolonizar para não perder a renda que daí lhe advinha.

 

A persistência das política colonial não foi então fruto de uma obstinação?

Houve obstinação ideológica mas não política e por isso é errada a teoria daqueles que dizem que ela foi fruto de uma loucura esquecendo a ausência de uma alternativa. O carácter ideológico foi-lhe dado pelo Estado Novo pois este alicerçou-se através da recuperação de falsas glórias do passado histórico.

A "Exposição do Mundo Português, foi uma fantasia criada pelo Estado Novo", diz Carlos Matos Gomes. Foto SNI

Pode dar-nos alguns exemplos das distorções históricas levadas a cabo pelo fascismo?

Além dos aspetos que já referi, cabe destacar a 1ª Exposição Colonial Portuguesa realizada, em 1934, no Porto, e depois a Exposição do Mundo Português, em 1940, que teve lugar em Lisboa. São ambas grandes encenações que seguem uma linha marcadamente fascista e fantasiam a realidade estribadas num nacionalismo que, contrariamente ao que alguns dizem, nunca pode ser democrático porque vive da imposição de uma História que não pode ser contraditada. E foi isso que aconteceu.

E o fascismo continua a navegar em “águas calmas”?

É preciso não esquecer que o país era essencialmente rural e as primeiras fábricas só começam a laborar já depois da I Guerra Mundial abrindo espaço à criação de alguns grupos económicos mas com maquinaria importada de Inglaterra, como aconteceu com a Siderurgia e com a primeiras empresas da CUF. Estes factos são a prova cabal que em termos coloniais Portugal não passa de uma subconcessão do colonialismo inglês.

Há também quem diga que o colonialismo português foi brando em relação aos povos colonizados. Concorda?

Não há nenhuma diferença em relação ao praticado por outros países talvez com a única ressalva relacionada com o facto de a exploração da terra ser relativamente mais frágil na medida em que não havia interesses tão poderosos na intenção de explorar as riquezas existentes no solo ou no subsolo.

Na relação entre colonos e colonizados houve alguma diferença?

Houve sempre uma separação entre colonos brancos e os locais, algo que vinha dos tempos da escravatura. Nenhuma potência colonial alguma vez admitiu a igualdade entre o colono e o negro porque era algo que estava fora de questão. Mas isso foi o que levou Bartolomeu de Las Casas e o Padre António Vieira a uma discussão para apurar se os índios tinham alma ou não pois se tivessem passavam a ser iguais a nós e deixariam de poder ser tratados como animais.

No entanto e apesar do contexto político e económico que refere, o país chega à democracia e faz a descolonização. Há algum momento decisivo?

Diria que o verão de 1973 marca o início da viragem política que irá desembocar no golpe militar do 25 de Abril.

"O colonialismo português não foi menos violento do que aquele que foi praticado por outros países"

Em 1973, o regime está todo em conspiração: Kaúlza de Arriaga tinha sido demitido e entra neste movimento conspirativo contra o Presidente da República, Américo Thomaz; Spínola está em conflito com Marcelo Caetano que por sua vez está também em conflito com Thomaz e com os militares porque vai mandar um dos seus estabelecer contactos com representantes dos movimentos de libertação.

Isso significa que as contradições corroíam um regime que se sentia perto do colapso?

Acima de tudo revelava que na ausência de uma solução política, o regime procurou apenas uma saída para a Guerra Colonial.

Que não encontrou...

A conspiração que emergiu como vitoriosa foi a do movimento dos capitães porque correspondia aos anseios mais profundos da generalidade do povo português.

Como é que caracteriza a operação militar "Nó Górdio"?

De uma forma muito sucinta, essa ação resultou da ideia de que era possível vencer uma guerra de natureza subversiva ou colonial através de grandes operações militares.Sabia-se que era um erro em função, por exemplo, da experiência da França na Argélia e na Indochina. Kaúlza de Arriaga lançou essa operação mas havia a perceção que nada resolveria porque é o tipo de estratégia executada no tempo errado, no local errado e do modo errado.

O romance “Nó Cego” termina com uma citação de Bertolt Brecht onde se pode ler: Nem mesmo o dilúvio/Durou eternamente. Um dia escoaram-se/ as águas negras. Em verdade, quão poucas/Duraram mais tempo. Porquê esta opção?

Porque como diz Brecht, nada é eterno e por isso a Guerra Colonial tinha que ter um fim e abrir um tempo para sarar feridas e conferir dignidade aos povos colonizados e a todos os portugueses que sempre se opuseram à opressão.

Kaúlza de Arriaga, mentor da operação "Nó Górdio" que se desenrolou em 1970, em Moçambique, com o objetivo de eliminar a infiltração de miltares das forças de libertação ao longo da fronteira da Tanzânia
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