Está aqui

Nem Europa do medo nem medo da Europa

Desde o crash financeiro de 2008, a política europeia é, na verdade, o outro nome da falência da União Europeia.

Sessenta anos de Tratado de Roma são seis décadas de ilusões e desilusões. À promessa de coesão e democracia, as instituições europeias sobrepuseram a lógica liberal e autoritária de Maastricht, aprofundada pela União Económica e Monetária, lógica que se tornou irreversível com o ajustamento dos últimos anos. No dia da efeméride, ninguém pode responder com segurança sobre o futuro da União. Mas não há quem não saiba que a Europa nunca foi o que prometeu e já não promete nada a não ser ameaças e castigos.

Desde o crash financeiro de 2008, a política europeia é, na verdade, o outro nome da falência da União Europeia.

A forma como as instituições responderam à crise dos refugiados é, além da negação de um projeto, a negação de uma história. Os refugiados europeus do século XX, fugidos da barbárie dos autoritarismos, encontraram asilo por todo o mundo. Mas quando os refugiados do século XXI procuram asilo na Europa, esta recusa-lhes o acolhimento e empurra-os para a imigração ilegal, os campos de detenção e as mortes no Mediterrâneo.

Em cada uma destas detenções, em cada uma destas mortes, está um pouco do falhanço do projeto europeu. E está a escolha de uma Europa que fez a política de Trump antes do tempo deste, política de muros, como o reforço das políticas de segurança e controlo de fronteiras, o acordo com a Turquia para a deportação de refugiados ou o reforço da directiva do retorno. Ao recusar cumprir as convenções internacionais sobre os direitos humanos, a Europa não combate a ascensão da extrema-direita; pelo contrário, mimetiza-a e promove-a.

Mas a crise da União Europeia de hoje é também a crise do seu espaço interno, a incompatibilidade entre a sua economia punitiva e a aspiração democrática dos seus povos. O “ajustamento estrutural”, transformado em austeridade permanente pelas regras do euro, aprofundou o fosso entre o centro e as periferias. E declarações como as do presidente do Eurogrupo não são apenas um excesso de linguagem - o próprio o disse e repetiu -, mas antes a expressão de uma visão profunda sobre uma Europa desigual, autoritária e disciplinar. No preconceito de Dijsselbloem cabe toda a política autoritária da Europa e cabe também a conivência de quem a aplicou em Portugal. O que há de insultuoso no que disse Dijsselbloem não é o estilo nem a retórica, é a visão de Europa que ele convictamente afirmou e que tem presidido às políticas concretas que mais contam no quotidiano das pessoas.

A cimeira que este fim-de-semana se realiza em Roma é mais um certificado de falência passado à União Europeia. O último episódio desta bancarrota moral são os cinco cenários de Juncker, que afinal é um único: a Europa a várias velocidades, que em vez de políticas de coesão se reduz a políticas securitárias e ao militarismo. Uma Europa em que o único factor de coesão é o medo das alternativas.

A tudo isto, o governo português, que tem afirmado publicamente uma alteração de comportamento face à postura submissa da direita, acaba afinal por responder com um europeísmo passivo e conformado: qualquer solução está bem desde que o Portugal “esteja no pelotão da frente”. Da resposta fica a pergunta: à frente de quê, em nome de quem e a caminho de onde?

A austeridade permanece como a única política da União Europeia. Numa Europa que prometeu ser plural, o pensamento único e o dogma liberal estreitaram as alternativas. Proteger o país dos choques externos e da desagregação do projeto europeu só pode significar prepará-lo para as escolhas mais difíceis, incluindo a saída ou o fim do euro. Outros países, com menos dificuldades, já o fizeram. A reestruturação das dívidas soberanas, o investimento público e o controlo público da banca e dos setores estratégicos da economia são certamente parte desse caminho. Saibamos, pois, percorrê-lo enquanto é tempo.

Artigo publicado no "Diário de Notícias" em 25 de março de 2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz.
Comentários (3)