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Um jornalismo sem memória histórica não sabe do que fala

Um jornalismo pode ser digno e competente, dando as notícias e contando as histórias do presente. Mas poderá dar as notícias e contar as histórias do presente se ignorar o passado?

Não pretendo fazer aqui uma apologia da investigação jornalística sobre temas históricos. Há história oral que é feita em primeiro lugar por jornalistas. Há cartas, diários, documentos inéditos que são comunicados em primeiro lugar a jornalistas. Há jornalistas que se encontram na primeira linha para consultar documentação de arquivo acabada de desclassificar. São por vezes jornalistas a abrir o caminho a investigações históricas. E são por vezes jornalistas quem pega a posteriori nas investigações históricas da academia e quem, em trabalhos de divulgação, as torna inteligíveis e acessíveis ao grande público.

De toda essa substancial contribuição do jornalismo para a historiografia não pretendo ocupar-me aqui. Ela tem o seu lugar e a sua importância. Sem ela, também poderíamos ter jornalismo – um jornalismo certamente mais pobre, mais afunilado, menos reconhecido pela sua contribuição para explicar o caminho que fizemos até aqui, mas apesar de tudo um jornalismo digno e competente.

O problema que quero tratar é outro. Um jornalismo pode ser digno e competente, dando as notícias e contando as histórias do presente. Mas poderá dar as notícias e contar as histórias do presente se ignorar o passado?

Tem sido uma constatação generalizada, a de estar a perder-se a memória das redacções e de esse ser um problema grave. Quando se reformam os colegas mais antigos, salta à vista o pouco ou nulo esforço que é feito para organizar a passagem do testemunho às gerações mais novas. Tudo se passa como se realmente se quisesse levantar uma Muralha da China entre a geração mais antiga e a mais nova, e criar um corte epistemológico entre duas culturas.

Mas essa é apenas a manifestação superficial de várias outras questões, entre elas a precariedade que agrava o abismo intergeracional, e que também não vou aqui examinar. Quero, sim, debruçar-me sobre uma outra - a fábrica de conformismo que se pretende instituir com o apagamento da memória histórica. Fazer tábua rasa do passado, pegar em cada notícia como se se estivesse a pegar no começo do mundo, é uma das receitas consagradas para impor na base da pirâmide o pensamento único vindo do topo.

A memória histórica não serve apenas nem principalmente para conhecer o passado. Serve, sobretudo, para olhar o presente com olhos atentos e críticos. Nada surge do nada. Quando um facto nos surpreende, isso não significa que ele tenha surgido do nada: significa que nós ignoramos de onde surgiu. Ignoramos os seus antecedentes, as suas causas e o seu contexto. Quando um protagonista político tem um comportamento inesperado, isso não significa que tenha enlouquecido – ou, mais precisamente, que tenha enlouquecido nesse momento: significa que não analisámos todas as circunstâncias envolventes e/ou as motivações e molas propulsoras da personagem em causa, aquilo que a faz correr.

Ninguém é uma folha em branco e só são completamente inesperados os comportamentos de protagonistas que não acompanhámos com atenção no seu percurso anterior. O jornalismo nunca pode ser inteiramente surpreendido nem mesmo pelos mais espectaculares golpes de rins ou pelas mais abruptas piruetas da vida política. Deverá tomar devida nota do que é novo – e há sempre algo de novo – mas deverá ter suficiente conhecimento do que vem de trás para não ser apanhado inteiramente desprevenido.

Quando um político renuncia ao voto do eleitorado e parte para uma carreira na Mota Engil ou no Goldman Sachs, isso pode, com alguma candura, ser visto como “traição” à ética do serviço público. E, no entanto, todo o historial da sua carreira política é composto de decisões que conduziam, com a maior naturalidade, a esse desfecho. É, aliás, pouco relevante instaurar processos de intenções sobre os cálculos de carreira futura que já possam ter estado presentes em tal ou qual decisão. O mais significativo é o argumento de Durão Barroso sobre a “normalidade” - isto é, a banalidade – deste mal. E ele é tão banal e encontra-se tão inscrito na natureza destes poderes que nos governam, que não é só Durão Barroso a passar pela porta: a porta é giratória e, entre os colegas de um Portas ou de um Barroso, é olhado como tolo quem não passar por ela.

Não teria sido sério profetizar a vitória do Brexit ou a vitória de Donald Trump. Mas o clamor sobre ambas as “surpresas” só pode explicar-se por uma convicção ingénua de que a rotina política devia prosseguir, de que as decepções da era Obama não teriam um preço, de que o chamado “projecto europeu” devia sobreviver sem sobressaltos à voragem neoliberal, de que os mesmos eurocratas continuariam indefinidamente a ditar a sua vontade, de que nunca seriam confrontados com a factura de um autismo obstinado e intratável.

Também ninguém podia profetizar a crise dos refugiados. Não se podia imaginar que a invasão do Iraque conduzisse em linha recta a um êxodo de massas de dimensões bíblicas, de países do Maghreb ou do Médio Oriente para a Europa. Na História não há muitas linhas rectas e esta também não foi. Mas não era difícil entender que a invasão do Iraque ia destruir um equilíbrio regional frágil e balcanizar pelo menos um Estado que era peça fundamental desse equilíbrio. Afinal, balcanizou muito mais do que isso. Encarar, hoje, o êxodo de refugiados como produto de uma loucura inexplicável de milhões de pessoas é algo que só se torna possível abstraindo – de forma forçada e, direi mesmo, fraudulenta – do devir histórico, dos antecedentes e dos seus responsáveis. Do mesmo modo, encarar o fim do processo de Oslo como resultado de uma qualquer teimosia subjectiva é ignorar que esse fim estava inscrito em letras de fogo, desde o começo, na natureza de um processo que se dizia de paz e era, afinal, de colonização e limpeza étnica.

Ignorar a História assume, na nossa actividade profissional, diversas formas. Pode assumir, por um lado, a forma de endeusar as agendas institucionais, as alternâncias sem alternativa, o business as usual - como se tudo estivesse sempre balizado pelos quatro anos de cada ciclo eleitoral e nada houvesse de novo sob o sol. Simetricamente, pode assumir a forma de uma concorrência frenética pelas últimas horas, pelos alertas, pelos directos - por vezes em lugar e momento onde nada acontece. Aí, a pessoa responsável pela cobertura jornalística deve dramatizar o vazio para justificar que lá está e para transmitir que, afinal, contra todas as evidências, se passa algo de importante.

Negar a relevância do que acontece e proclamar, em tom sensacionalista, a relevância de acontecimentos menores ou de não-acontecimentos são frente e verso da mesma medalha – a negação da historicidade dos tempos que correm.

Repito, então, para concluir: não pretendo com isto dizer que o jornalismo deva ocupar-se do passado. A História não é só o que algum dia aconteceu. É também o que acontece agora e que tem impacto no futuro. Todos os dias vivemos processos históricos, às vezes sem darmos por eles. E com frequência vivemos acontecimentos que ficarão na História, sem nos apercebermos imediatamente do seu alcance e significado.

O negacionismo da História, à Fukuyama, tem as pernas curtas e corre o risco de ser desmentido na primeira esquina do calendário. Foi isso que lhe aconteceu e é isso que acontecerá, forçosamente, às tentativas que regularmente se registam no mesmo sentido. Por chocar com a realidade dinâmica da vida, o negacionismo da História é também uma negação do jornalismo. Podemos falar do passado ou não falar: mas devemos pelo menos falar do presente tendo presente a memória e a perspectiva histórica. Ou então não saberemos do que falamos.

Intervenção no Congresso dos Jornalistas

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