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Barroso à imagem da UE

Qual é o problema de titulares de cargos de decisão política seguirem as suas carreiras profissionais como e onde mais lhes convier depois de abandonarem essas funções?

Depois do caso da contratação de Maria Luís Albuquerque pela Arrow Global, voltamos este Verão a ver um militante do Partido Social Democrata a passar a porta que nunca para de girar entre o poder político e a alta finança. A contratação de Durão Barroso pela Goldman Sachs deixou-o de baixo de uma chuva de críticas, até agora 63 mil pessoas assinaram uma petição exigindo regras mais restritivas sobre as carreiras de ex comissários europeus e 140 mil pedem que sejam tomadas medidas exemplares contra Durão Barroso, nomeadamente a suspensão da sua pensão paga pela comissão europeia1. Em resposta, Jean-Claude Junker reiterou à Provedora da Justiça da UE que Barroso passaria a ser recebido na Comissão, “não como ex-presidente, mas como lobista”.

Mas qual é o problema de titulares de cargos de decisão política seguirem as suas carreiras profissionais como e onde mais lhes convier depois de abandonarem essas funções?

Bom, para o PSD parece não haver problema nenhum. Recordemos como Pedro Passos Coelho ficou orgulhoso do valor de Maria Luís Albuquerque “ser reconhecido por uma empresa importante (...) e que, normalmente, só recruta gente com prestígio e valor" a propósito da relação bem lucrativa entre a ex-ministra das finanças e um fundo que especula sobre dívidas soberanas, e não nos esqueçamos do “espetáculo que não abona nada em favor das instituições europeias” que Luís Montenegro viu na retirada de mordomias pela Comissão Europeia ao agora administrador do maior banco de investimento do mundo. De facto, observando o historial das relações dos maiores partidos com a alta finança, percebemos que saltitar entre funções públicas de decisão política e altos cargos nos setores que, direta ou indiretamente, se tutelou não só não parece ser um problema para os maiores partidos, como de tanta prática passou a quase-regra. Para 363 militantes partidários de PSD, PS e CDS, a nomeação ou eleição para um cargo político foi o melhor investimento nas suas carreiras profissionais.

Mas, para quem nunca teve nem pretende ter a sua carreira profissional agenciada por partidos e pelo poder político, a promiscuidade entre o poder económico-financeiro e o político é um perigo óbvio para a sociedade e para a democracia. A este propósito, sintetizo aqui 3 das principais e mais preocupantes razões sobre o novo emprego de Durão Barroso.

1. Privilégio para o setor financeiro no processo do Brexit. A Goldman Sachs, em conjunto com outros 4 mega-bancos de investimento, aliou-se ao governo britânico para assegurar que Londres continue o centro financeiro internacional que é. É óbvio que a lista de contatos que Durão Barroso criou enquanto presidente da Comissão Europeia será muito útil à Goldman Sachs para condicionar o processo do Brexit e assegurar que os capitais continuem a circular livremente, que as condições para atividades especulativas perdurem e que, no fundo, o processo de desvinculação do Reino Unido da UE seja feita com os interesses do setor financeiro em primeiro plano.

2. Menor capacidade regulatória sobre o sistema financeiro. É sabida a aversão da banca de investimento à regulação financeira. Ora quando a Goldman Sachs, paladina da desregulamentação total dos mercados financeiros e fundamentalista da livre circulação de capitais, conta nas suas hostes com o presidente da Comissão Europeia que participou no desenhou e na negociação da estrutura da regulação na Europa, passa a conhecer com detalhe cada ponto fraco dessa regulação. Por exemplo, em 2013 a Comissão Europeia, na altura presidida pelo senhor Barroso, propôs a criação de uma “European Union financial transaction tax”, a ser introduzido no início de 2014. Entretanto, por falta de vontade dos países-membros, o processo tem vindo a ser adiado. Com Barroso como administrador, a Goldman Sachs passa a conhecer os meandros da negociação deste imposto e pode eventualmente bloquear a sua instituição caso a discussão da sua aprovação ganhe força.

3. Menos Democracia, Mais Crise. Numa União Europeia de desenvolvimento divergente, que segue uma tendência de concentração de poder e riqueza no centro da Europa e de esvaziamento da democracia dos estados, este é mais um episódio que aclara a promiscuidade que existe entre a UE e os grandes negócios do capital financeiro. Recordemos como há três meses atrás a Goldman Sachs foi considerada culpada pela justiça norte-americana de vender gato por lebre no mercado de títulos garantidos por hipotecas, ficando provado que a sua especulação em torno da qualidade destes títulos contribuiu de forma decisiva para a bolha do setor imobiliário que produziu a grande recessão de 2008. Apesar da sua história de atividades fraudulentas, a quantidade de dirigentes de instituições europeias que passaram pela Goldman Sachs é extensa, de Van Miert a Mário Draghi, de Mário Monti a Carlos Moedas.

Uma Europa que pune os seus cidadãos com austeridade e empobrecimento em resposta à crise financeira, e premeia os seus dirigentes com enormes remunerações nas grandes corporações que nos conduziram a esta crise é uma Europa disfuncional e sem futuro. Se julgamos que ainda vamos a tempo de a curar desta perversão, é preciso acabar com as portas giratórias, aumentando o período de nojo em que um ex-dirigente da UE não possa trabalhar para empresas privadas de setores estratégicos ou setores que tutelou direta ou indiretamente, bem como devolver aos estados a soberania sobre os seus setores financeiros, subordinando os seus interesses aos interesses dos povos europeus. A dúvida é mesmo se ainda vamos a tempo.

Versão estendida de artigo publicado em p3.publico.pt a 19 de setembro de 2016


1 Pouca mossa fará a alguém que terá, certamente, um salário milionário à sua espera na Goldman Sachs.

Sobre o/a autor(a)

Economista, fundador do Coletivo Economia Sem Muros da Nova de Economia. Dirigente do Bloco de Esquerda
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