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Praxe: demasiado cedo ou demasiado tarde para uma alternativa?

Pela primeira vez, ao fim de duas décadas onde a praxe hegemonizou o espaço da chamada “vivência académica”, temos a oportunidade de ensaiar modelos alternativos que recebam os novos alunos.

Durante a semana passada, foram noticiadas várias entrevistas onde o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior Manuel Heitor criticava a violência e o abuso das praxes e convidava todas a academia a pensar num modelo alternativo. Defende o Ministro, em declarações ao Público, que devem ser feitos programas de receção aos novos alunos centrados na cultura e na ciência que sirvam de “alternativa” aos ritos habituais no início do ano letivo.

O efeito d’A Carta Aberta «A Democracia faz-se de Alternativas» lançada no final do passado ano letivo surte efeitos. Assinada por 100 personalidades das mais variadas áreas sociais, profissionais e políticas, esta Carta apelou a que todas as instituições de ensino superior criassem uma alternativa às praxes académicas:

Assim, instamos todas as equipas dirigentes das Universidades, Politécnicos, faculdades e escolas superiores a criar, com caráter duradouro, atividades de receção e de integração dos novos estudantes e das novas estudantes, ao longo do ano letivo, que configurem uma alternativa lúdica e formativa às iniciativas promovidas pelos grupos e organizações de praxe.

Apelamos também a que as mesmas instituições informem atempada e eficazmente todos os novos alunos e todas as novas alunas, por exemplo através do envio de um email ou entregando, no ato da matrícula, um esclarecimento nesse sentido, de que as atividades de praxe não constituem qualquer espécie de obrigação e que não podem ser prejudicadas de nenhuma forma ou ameaçados de qualquer maneira por recusarem participar, devendo ser fornecido um contacto para o qual possam ser endereçadas queixas.”

Esta integração alternativa deve contar com todas as forças vivas da academia, desde cientistas a movimentos de estudantes, clubes académicos e associações. É bom sentir que o debate que o Bloco sempre quis fazer (dentro e fora do Parlamento) e a Carta Aberta em Defesa de uma Integração Alternativa que juntou mais de 100 personalidades começa agora a ganhar corpo.

O próprio movimento estudantil tem vindo a criar esses espaços alternativos. Em Coimbra, o coletivo Criatividade junta dezenas de ativistas que preparam uma semana de receção alternativa às tradicionais boas-vindas praxísticas. Desde concertos a debates sobre o estado do ensino superior, os espaços informais que aqui são ensaiados fazem o seu caminho.

Em Lisboa, o grupo de estudantes “Alternativa” desenha, para as próximas semanas, um formato de receber os novos alunos na capital do país. É uma tarefa árdua quando não existem grandes alicerces nem histórico recente nesse aspeto, mas a vontade de imaginar uma integração diferente da que tem sido executada ultrapassará os constrangimentos do presente.

Também no Porto, já várias Associações de Estudantes se têm afastado da lógica da violência e da pressão para “integrar”. Na Faculdade de Letras, há vários anos que a Semana de Receção tem vindo a provar que todos e todas são bem-vindas a uma cidade onde a comunidade académica tem um peso histórico e é parte constituinte da vida da invicta.

Esta notícia é uma porta aberta para uma discussão que tardava acontecer. Se serão os cientistas a resolver o problema da integração? Não. Mas pela primeira vez, ao fim de duas décadas onde a praxe hegemonizou o espaço da chamada “vivência académica”, temos a oportunidade de ensaiar modelos alternativos que recebam os novos alunos e construam com eles uma integração real, onde a humilhação e a violência ficam de fora.

É demasiado cedo ou demasiado tarde para uma alternativa? É a hora e ela está a acontecer.

Artigo publicado no jornal “Vivacidade” em 4 de setembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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