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Politicamente correto?

A propósito do uso e abuso desta expressão nos últimos tempos em alguns órgãos de comunicação social, gostaria de desmontar o que está, a meu ver, por detrás da utilização desta expressão do “politicamente correcto”.

É com enfado que algumas pessoas consideram que há uma “ditadura” que impõe a utilização de uma linguagem não sexista, ou seja, uma que não invisibilize os diferentes géneros em vez duma “fórmula mágica neutra” que apaga e apenas mostra o género masculino na sua irresistível força e preponderância. Talvez o caso da proposta da alteração da designação do Cartão de Cidadão para “Cartão de Cidadania” tenha sido um dos últimos actos deste sobressalto de quantos e quantas se sentem tão confortáveis debaixo do chapéu do falso neutro que é, na nossa língua, o masculino. Muitos adjectivos jocosos, sobranceiros, irritados vieram à baila nessa ocasião.

A luta pela paridade foi longa e foi outro momento alto para os praticantes do escárnio e maldizer, quando se trata de lutas que as mulheres corajosamente decidem enfrentar. O mérito ou a falta dele foi então brandido até à exaustão, não fossem elas querer ocupar lugares que não lhes competiam e que por tradição eram deles. O mérito deles nem se questionava! Alcançada a paridade na lei há que defendê-la na vida e no dia a dia, pois sabemos que quando as mulheres estão a assumir cargos de responsabilidade e com visibilidade, qualquer deslize ou inabilidade que é tolerado aos homens já não o é às mulheres.

Como feminista e orgulhosa de o ser e de referi-lo, tento lembrar alguns episódios da História recente da Humanidade, das lutas tão duras que as feministas fizeram para fazer valer os seus direitos e para fazer a roda da história evoluir para a modernidade: a luta pelo acesso à educação e à formação, a luta pelo direito ao voto, a luta pelo exercício da sexualidade e pelo direito ao corpo, a luta pelos direitos laborais em igualdade… Tudo lutas muito duras, com diferentes estádios de evolução e de exercício nos diversos cantos do mundo, mas que hoje, muitos dos nossos jovens – rapazes e raparigas – encaram como naturais. Considero que é esse exercício de cultura democrática, de aprendizagem de um legado que foi o resultado de lutas e conquistas muito duras, que temos obrigação de fazer chegar a eles e a elas. Quem com enfado usa a expressão “politicamente correcto” para desvalorizar os avanços que são de todas as pessoas e para todas – mulheres e homens – expressa de forma velada ou envergonhada uma posição conservadora de não concordância com a evolução das mentalidades, dos costumes, das atitudes e dos valores e de apego aos estereótipos sexistas da sociedade.

A comunicação social, as organizações e associações feministas e de defesa dos direitos e as campanhas mediáticas podem e devem ter um papel muito importante na alteração desses estereótipos. Mas não bastam campanhas pontuais. Elas têm que fazer parte do quotidiano e impôr-se com “norma”; só assim trarão mudanças sustentadas e a longo prazo. São conhecidos estudos sobre a distribuição do tempo na participação de mulheres e homens nas tarefas domésticas e, apesar das ainda grandes diferenças, é um facto que os homens têm vindo a assumir tarefas, impensáveis de o serem pelos nossos avós. Cada vez mais homens dão banho aos seus filhos e filhas, os/as levam ao infantário e à escola, lhes dão o biberão, lhes mudam a fralda, lhes dão colo e lhes contam uma história ao deitar… Isso precisa ter uma expressão clara na sinalética nas casas de banho públicas, o que é raro, pois o fraldário surge, regra geral, apenas nas casas de banho para senhoras. Foi com satisfação que nestas férias encontrei numa casa de banho de um supermercado o sinal de fraldário, quer na casa de banho das senhoras quer na casa de banho dos homens. Politicamente correto? Não! Apenas a realidade dos nossos dias! Incorreto sim é este caso não ser a norma, pois é isso que ajuda a mudar a visão de homens e mulheres sobre os papéis que devem desempenhar. Correto sim é dar visibilidade ao que já acontece na sociedade.

Quem usa e abusa dessa expressão do “politicamente correto” deseja perpetuar um status quo que é passado, que faz parte da tradição e que já não corresponde à realidade.

Artigo publicado em acontradicao.wordpress.com

Sobre o/a autor(a)

Professora aposentada, feminista e sindicalista
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