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Profetas, feiticeiros e pantomineiros

Os deuses acham sempre pouco. O hálito voraz das agências financeiras pressente-se em cada encontro e no sobrolho franzido das suas pitonisas sibilantes. O binómio profeta-feiticeiro gera o inevitável conceito do pantomineiro.

Põem um ar preocupado e sofrido, sério, e dizem sempre que já tinham avisado. Era preciso fazer muito mais. O verbo fazer não deve ser encarado com a sinonímia habitual. Quer dizer cortar serviços públicos, congelar e se possível sacar, cortar, diminuir salários, pensões e outras sobrevivências diminutas. Estes são os profetas. Há muito que sabiam tudo. Estiveram normalmente nos governos anteriores, chafurdaram nos números económicos, entraram e saíram e acharam sempre que não conseguiam salvar o país devido à incompetência e à falta de coragem dos outros. Agora pressagiam catástrofes e reclamam mais medidas, sacrifícios, penitências, renúncias, como se quem trabalha ou trabalhou uma vida inteira tivesse que expiar, resgatar, remir, o facto de estar vivo, de existir, de respirar.

Depois aparecem os feiticeiros.

Trazem nos bolsos papéis cheios de soluções a aplicar brevemente quando se sentarem no poder. Têm um ar igualmente sério e compenetrado. Até parecem bons rapazes. O que propõem é sempre para salvar o país. Depois virá o paraíso. O mundo poderá ruir à nossa volta que eles prometem que, passado o sacrifício inicial, para o ano, ou para o outro ano ou em qualquer década que há-de vir, os anjos entoarão hossanas e cada português alcançará felicidade.

Conhecemos já estas cantigas, festivais, a que se soma a música governamental.

Entretanto o concerto afinado profere o abracadabra da culpa. Culpados. Somos nós os culpados. Os do rendimento mínimo, os velhos, os doentes, os desempregados, integram uma verdadeira ameaça ao equilíbrio económico, são eles os verdadeiros responsáveis pelo défice. São gente má que nada produz, que não faz pela vida, que querem ser pobres para receberem subsídios, que envelheceram de propósito para receber reformas, que adoeceram voluntariamente para mandriar e esbanjar cuidados nos hospitais. Para não falar dos desempregados, gente sem garra para arranjar emprego.

Talvez não digam exactamente isto, mas é isto exactamente o que querem dizer.

Os deuses em que acreditam falharam redondamente. Deuses agenciados olharam, coniventes e confiantes para planos arrojados, completamente desregulados, e acreditaram nas potencialidades do mercado da pilhagem financeira. Deuses incompetentes olharam e calaram e caucionaram afirmativa e assertivamente o desmando planetário. São os mesmos deuses que agora pressagiam bancarrotas, exigem pagamentos, sobem taxas, não abdicam de lucros accionistas num reiterado fascínio pelo saqueio sempre pelas melhores razões. Não têm nem legitimidade nem proficiência, não têm sequer idoneidade para apresentar uma conta de somar, mas ao ouvi-los os governos metem a viola no saco e fazem exactamente o que eles querem, ou melhor, exigem.

A economia transformou-se num estado de espírito. Depressivo ou delirante, conforme os casos, os países e as agências. Se os deuses sorriem estamos safos. Se vociferam estamos tramados.

Aterrorizados ministros primeiros, segundos e terceiros falam baixinho em conversa privada, e com muita disciplina e a espinha muito encurvada em vénia respeitosa, sacam à bruta o que podem e o que não podem.

Os deuses acham sempre pouco. O hálito voraz das agências financeiras pressente-se em cada encontro e no sobrolho franzido das suas pitonisas sibilantes.

O binómio profeta-feiticeiro gera o inevitável conceito do pantomineiro.

Gargarejam todos, números com muitos zeros à direita para eles e muitos zeros à esquerda para nós, têm uma relação erótica com a estética da finança, entronizam défices, essa coisa pegajosa que não se vê, não se come, nem se apalpa, mas que nos suja a vida.

Países feridos, golpeados. A peste. A peste económica, epidémica, do capitalismo financeiro.

A economia é uma aldeia mal frequentada.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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