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O Brexit e Portugal

Visto de Portugal, quem pensa que foram os ingleses que nos protegeram do Napoleão, dos Habsburgos e do Hitler, fica com aquela espécie de sentimento estranho de que havíamos de prestar mais atenção ao que se está a passar na Grã Bretanha nestes dias... Por João de Pina Cabral, publicado em De Outra Maneira.
Foto de freestocks.org/Flickr.

Visto de Portugal, quem pensa que foram os ingleses que nos protegeram do Napoleão, dos Habsburgos e do Hitler, fica com aquela espécie de sentimento estranho de que havíamos de prestar mais atenção ao que se está a passar na Grã Bretanha nestes dias.  É que já vão mais de oito anos em que fomos sujeitos a um regime político e económico que nós não escolhemos, que não nos serve, e que pôs de pantanas tudo o que era de positivo e optimista no nosso projecto nacional.  Dá para pensar, não?

E, no entanto, é difícil, porque tudo dá a entender que a reacção da populaça inglesa foi ‘emocional’ e não ‘racional’, como dizia hoje de manhã à BBC uma eurodeputada búlgara.  O entrevistador ainda tentou dizer-lhe, “Mas olhe que as pessoas que votaram, pensaram muito nisso e não são estúpidas.”  Mas a eurodeputada não queria ouvir, já sabia que eles eram uns ignaros e que quem tinha razão era ela.  Vamos mas é vingar-nos desses ingleses, sugeria—opinião, aliás, generalizada na Alemanha e abertamente expressa por esse senhor Juncker (para quem leu história, o nome prussiano do homem até dá calafrios, caramba!). 

Foi aí que eu pensei: e nós, será que estamos como essa búlgara, sem  capacidade para ouvir?  Notem: eu teria votado Remain se fosse cidadão britânico e detesto esta decisão do Brexit, que me vai transformar a curto prazo num estrangeiro na terra onde eu tenho vivido há quatro anos como cidadão.  Trabalho numa universidade cujo lema é ‘nós somos a universidade europeia da Inglaterra’—e eu honro-me muito disso.  Votei até como membro do Senado para manter o lema e dar mais corpo a esse projecto colectivo.

Por isso, talvez valha a pena perceber mesmo quem é que votou em quê.  Na Irlanda do Norte, os irlandeses católicos votaram Remain, os unionistas Leave.  Qual a surpresa?  Afinal, apesar da crise, os irlandeses são um dos povos que mais tem ganho com a UE.  A Irlanda é hoje um dos instrumentos mais perversos das políticas europeístas de desvio de fundos públicos para o grande capital internacional.  As grandes empresas estão todas sediadas lá e pagam praticamente nada de impostos e a UE não só deixa que isso se passe como parece até promover esse escândalo.  Ao menos assim, os pobres dos irlandeses sempre se vão arranjando.  Esta, aliás, é uma das coisas que leva os ingleses a votar por sair.

Depois a Escócia.  Votaram todos Remain.  Claro!  Eles conseguiram proteger-se através do seu parlamento regional dos piores excessos perpetrados por estes governos sucessivos (primeiro, os governos militaristas do Blair e depois os governos liderados por este grupo de milionários de Eton, funcionários bancários, cujos pais todos fazem parte da lista dos Panama Papers).  Por isso, a Escócia conseguiu manter intacto o seu estado social, a educação superior é subsidiada pelo governo, protegeram o seu serviço nacional de saúde, reformaram os outros serviços públicos.  Vive-se hoje muito melhor na Escócia do que em Inglaterra—todos os escoceses se honram disso: faz frio, mas vive-se melhor.  Para eles, a UE é a maneira que eles têm de se proteger do assalto dos Tories da City londrina.  Eles não podem dar-se ao luxo de serem governados por essa gente e então votam pela Europa, mesmo até os membros escoceses dos próprios Tories (o partido escocês fez a campanha a favor de Remain).

Em Londres (que constitui uma percentagem importante da população do Reino Unido) o voto foi por ficar.  Claro, não só eles são os que ganham com este governo de financeiros discípulos da Thatcher, como são uma população multinacional que não se identifica com o resto do país.

Restam as cidades menores e os campos em Inglaterra e no País de Gales, onde eles têm sofrido um regime de austeridade quase tão desumano como o português: aí, eles vêem o serviço nacional de saúde e os outros serviços públicos a deteriorar-se diariamente; vêem o desemprego sistémico como forma de vida a longo prazo; e os que querem estudar na universidade chegam à vida adulta com uma dívida absolutamente escravizante que os impede de comprar a sua própria casa e que os obriga a alugar as casas ao grande capital estrangeiro, que tem vindo a comprar bairros inteiros por essa Inglaterra fora (como aliás também tem feito em Portugal com o apoio do nosso governo e da UE). 

A propósito: na Alemanha, o ensino superior continua a ser subsidiado integralmente pelo estado; quase não há desemprego jovem; o serviço nacional de saúde é exemplar; e existem políticas para compra de casa.  Os outros não podem, não é?  Interessante.

É fácil dizer dos ingleses, como dizia a búlgara: coitados, são brutos e por isso votam nacionalisticamente.  Mas afinal, estarão eles mesmo assim tão errados em ter tanto medo dos imigrantes?  Sim, estão, não há dúvida disso.  O Nigel Farage e o Boris Johnson são populistas que apelam aos sentimentos mais primários das pessoas.  Apelam ao medo, perversamente atacando os liberais disso mesmo, nessa espécie de golpe contra-publicitário que era tão característico dos nazis. 

Objectivamente, nem os imigrantes são assim tantos, nem criminosos como o inglês comum pensa, nem são os imigrantes que lhes estão a fazer mal.  Mas também é verdade que, sem esses imigrantes, o regime de trabalho instável, mal pago, sem direitos sociais—o regime alemão—a que eles estão a ser sujeitos não teria sido implementável.  São os pobres dos imigrantes e refugiados que fazem de penetras para boicotar os direitos historicamente adquiridos pelos trabalhadores e servir os interesses do grande capital internacional que quer proletarizar os europeus.  Não será isso que está por detrás de toda essa história recente de refugiados na Alemanha?  Será que até os alemães já viram?  As tristes vítimas de guerras, que alguém está a subsidiar, são usadas para promover o subemprego na Europa no interesse desses mesmos que promovem essas guerras.  Nunca jamais os ingleses irão perdoar isso ao Blair.  A tentativa dele entrar nesta disputa do Brexit foi mesmo muito humilhante, como não podia deixar de ser.  Nem os de direita lhe perdoam e muito menos os de esquerda.

Se assim é, vocês perguntam, então porque votaram os ingleses, ainda há pouco mais de um ano, para meter lá um governo de Tories com maioria absoluta?  A resposta que, há um ano atrás, era difícil de ser formulada, hoje parece clara: (1) porque o Labour que lhes propunham era em tudo igual aos Tories e não lhes respondia a nada, e é sempre melhor ficar com o mal que já se conhece, (2) porque os Tories lhes prometiam este referendo e eles já sabiam como iam responder!  Estúpido foi o Cameron, concluímos!  Deixou-se levar pela sua arrogância a pensar que iria conseguir enganar toda a gente mais uma terceira vez.  Esse homem merece bem o esquecimento a que agora virá a ser votado.

O que é que nos surpreende, então, na conclusão que os ingleses tiraram disto tudo, e que tanto irrita os alemães?  É que eles não parecem estar a pensar como a gente quer que pensem: direita/esquerda; fraternidade europeia; melhores condições para a prosperidade dos mercados financeiros.  Nada disso os move.  Estão, pelo contrário a pensar sem política, a partir do que lhes interessa a eles, de como querem viver.  A Europa, para eles, é um lugar mais quente onde se faz férias, a esquerda há muito que afinal era mentira e a prosperidade financeira da City a eles só lhes tem lixado a vida.  Todos os argumentos económicos sobre como o Brexit ia ser mau para as finanças, passaram-lhes ao lado completamente.  Quais finanças, perguntam, as deles lá em casa?  Não estão as finanças deles pior do que sempre estiveram desde os anos 60?  Assim pensam as pessoas que não estão politizadas institucionalmente.  É normal, não?

E agora nós!  Que nos diz isto a nós, os portugueses?  Não é fácil decifrar, mas uma coisa é certa: se pensarmos generosamente que a elite alemã que nos governa a partir de Bruxelas vai tomar o Brexit como uma lição, estaremos muito, mas muito errados.  Os Junckers deste mundo têm pouco jeito para ouvir, já o disseram.  Eles sabem gritar os chavões bonitos, mas estão-se mesmo nas tintas para os interesses dos seus concidadãos europeus, como explicitou claramente o Schäuble muitas e muitas vezes.  Aliás, os jornais alemães são explícitos sobre o facto de que os nibelungos que vivem ao pé do mar, plantados no sul da Europa, deviam mas é fazer o que lhes mandam.  Não veio então a Merkel insistir na inutilidade dos portugueses serem educados, que depois não podem fazer os empregos para que são vocacionados?  Já não se lembram dessa pérola de juízo alemão?  Pior que isso, só o Cavaco quando usava esse mesmo argumento nos anos 90. (Já não se lembram, não é?)

E nós, então?  O problema que o Brexit nos põe a nós, portugueses, é o mesmo que põe a todos os outros europeus das margens.  Que projecto europeu é este?  Temos mesmo é que aprender com os ingleses e começar a pensar a partir de onde estamos, deixando de lado os cansados chavões políticos que os Passos Coelhos nos querem vender e que nos têm escravizado.  Não vamos pensar naquilo a que temos direito, vamos pensar naquilo que queremos obter.  Melhor assim, não?  Afinal, que é isso de ter direitos num covil de ladrões?

Tal como os ingleses das províncias, os portugueses também querem um governo mais justo, ensino mais qualificado e menos caro, menor corrupção financeira, mais serviço nacional de saúde, mais impostos para os muitos ricos, melhor distribuição do rendimento, melhores instrumentos de pequena poupança que não absorvam e cancelem as poupanças que a classe média tenta fazer , etc.  Depois dizem-nos: mas isso é impossível porque o capital internacional não vai deixar.  E aí é que chega o momento de pensar na Europa. 

Para que serve então a UE?  Se juntando-nos não conseguimos lutar contra a vergonha das agências de rating internacional, contra o escândalo da nossa classe média incipiente estar a ser trucidada para pagar as dívidas dos banqueiros, contra a transformação de todo um país em mão de obra barata disponível para ir para onde seja necessitada.  Se não conseguimos isso, então para que serve a UE?  Se governados por alemães estamos pior do que sem eles, então para quê?

E aí é onde temos que olhar mesmo para nós próprios com alguma coragem como fizeram os ingleses.  Caramba, os dias da cobardia representados pelo Cavaco já podem ir passando!  Chegou o momento de olharmos mesmo para nós e tentar ver um bocadinho mais claro o que é que nos convém.  Neste momento, este país é um país sem projecto.  Soubemos muito bem,  nos anos 90, reformular a nossa história e valorizar pós colonialmente o nosso passado.  Quem não reconheça a forma brilhante como os portugueses dos anos 90 souberam redesenhar a sua história—através de Timor, através de Macau, através da Expo, através de um relançar de relações com o Brasil—quem não reconhecer isso ou é cego ou é mal intencionado.

Soubemos fazer e bem!  Até soubemos ultrapassar um pouco o trauma que o fascismo tinha deixado dentro de nós: soubemos relançar a educação superior, soubemos criar uma das mais brilhantes gerações de artistas, escritores e cientistas que Portugal jamais teve e que agora, coitados, espalhados pelo mundo, onde serão sempre bons, mas serão sempre aliens, como dizem os ingleses (e como dentro em breve eu voltarei a ser).

Mas o que não soubemos foi criar um novo projecto para Portugal.  O nosso projecto era o federalismo europeu dos anos 80 que Mário Soares tão brilhantemente soube imaginar.  Queríamos ser mais e melhores membros dessa grande nação europeia, queríamos reconstituir a glória de Roma em Bruxelas.  Mas a Nova Roma, afinal, estava governada por ladrões que, quando chegou a crise, se riram de nós e nos deixaram cair na lama.  Quando chegou o momento de proteger esta pequena nação, sem moeda própria, contra as agências de rating, eles levantaram o dedo crítico e disseram: “Maus meninos!”  E puseram-nos a pagar as dívidas contraídas em nosso nome pelos bancos dos outros e que, afinal, eram todos (sem uma única excepção, descobrimos agora) uma escola de corruptos.  Perdemos dez anos em que servilmente nos rebaixámos a tudo o que nos mandaram fazer.  Será que teremos mesmo que continuar assim para sempre?  Não haverá mesmo outra hipótese?

Quando os ingleses são a favor do Brexit, que fazem os portugueses?

Infelizmente a resposta é: nada!  Que fazer?  Sozinhos nunca iremos a parte nenhuma porque somos pequenos demais e já não há mais terras distantes para conquistar.  Enquanto houve, ainda nos safámos.  Agora que já não há, que fazer?  Ora, se o problema é que somos pequenos demais, então a solução não seria encontrar outros para ir connosco?  Por vezes, os portugueses sofrem do mal de que sofriam os Irmãos Max: nunca aceitaremos ser membros de um clube tão reles que aceite gente como nós.

O primeiro trabalho a fazer, dir-se-ia, é começar a olhar para o lado: quer dizer, começar a fazer amigos nas periferias deste mundo; começar a falar com os que sofrem tanto quanto nós, perante este jugo odiento que constitui a forma como a elite financeira internacional vai acumulando mais e mais capital e vai abafando a economia mundial com esse capital subempregue—que só sabe gastar em coisas vergonhosas como as guerras que os Salafitas Saudis andam a fazer contra o mundo civilizado na Turquia, na Síria, no Paquistão, na Líbia e no Afeganistão.

Portugal vai ter que encontrar um novo projecto e esse projecto não pode ser alemão, porque os alemães já demonstraram em três guerras militares e mais uma guerra financeira, que não sabem governar nos interesses dos seus súbditos.  Já quanto aos franceses ... só consigo pensar na Linha Maginot quando ouço o Presidente deles a dizer ainda mais vacuidades perante as crises que se acumulam à sua porta.

Por isso, vamos lá!  Chegou a altura de começar outra vez outro projecto.  Vamos falar com Gregos e Turcos; com Cabo Verdianos e São Tomenses; com Brasileiros e Angolanos; com Finlandeses e Estónios; com Catalães e (se domingo a coisa se resolver de uma maneira menos destrutiva) até com Castelhanos!  Vamos ver se os Italianos conseguem ter alguém que fale connosco.  Para que serve afinal esse Palácio das Necessidades!  Mas não é pensar com os alemães, é pensar à margem deles!  É pensar por nós: aquilo que os portugueses não sabem fazer, mas que os ingleses parecem saber fazer bem demais.  Sem uma nova política internacional corajosamente virada para as margens, nós vamos continuar nesta escravidão europeia.  O Juncker já nos disse isso, porque é que nós não queremos ouvir?

Artigo de João de Pina Cabral, publicado a 26 de junho em De Outra Maneira.

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