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Será que Ferro Rodrigues tem razão sobre a maldição do centro europeu?
Ele foi citado na imprensa sobre duas razões: que o “consenso de Washington” substituiu lamentavelmente o “consenso keynesiano na Europa” e que o PS devia tomar a defesa do “Estado Social” como a sua “linha vermelha”. Ambas são notáveis, mas a mim interessa-me ainda mais o diagnóstico que o orador apresentou sobre o fracasso dos partidos socialistas na Europa, o que foi pouco referido pela imprensa e pelos comentadores, se é que alguma coisa foi dita sobre ele ter puxado o assunto.
A explicação de Ferro Rodrigues é mais importante do que as duas constatações que sugeriu e mesmo mais provocante, até porque ninguém se pode limitar a constatar que o “consenso de Washington”, ou seja, o neoliberalismo, triunfou, sem se perguntar porque é que os partidos socialistas apoiaram esse caminho, por via da Terceira Via e por outras vias. Mais ainda, ao definir os serviços públicos como o alfa e o ómega da política do seu PS, o orador não podia deixar de se perguntar porque é que tantos partidos socialistas aceitaram ou promoveram a austeridade que enfraqueceu os serviços públicos. Foi justamente por ter feito essas perguntas que esta intervenção se destacou entre muitas das restantes.
A este respeito, Ferro Rodrigues ofereceu uma constatação e propôs uma explicação. A constatação é que muitos partidos socialistas estão a cair eleitoralmente porque foram infiéis aos seus eleitores (o resumo é meu, a intervenção não foi transcrita por nenhum jornal ou site).
Começo pelo facto: estão mesmo a cair. Veja os dois mapas aqui ao lado (se clicar obtém uma imagem ampliada, são ambos do The Economist), ambos referidos aos partidos da família socialista e social-democrata na Europa (não confundir com o PSD português, porque aqui temos a sorte de termos muitos nomes trocados entre os partidos). O primeiro gráfico dá-nos a evolução dos resultados eleitorais ponderados pela dimensão do eleitorado e resumindo num índice a evolução de todos os partidos socialistas e social-democratas, a partir de um ano de referência, 1970 (que é igual a 100 neste gráfico). Como verifica, houve subidas até 1985 (chegou a 110) e depois caiu 30 pontos até 2015. O gráfico indica alguns dos grandes momentos desse percurso. Quando se inicia a grande queda, que parece não parar? Precisamente quando começa a austeridade na Europa e quando Merkel ganha uma posição hegemónica, nomeadamente com o apoio do partido social-democrata alemão, de Gabriel e também do mesmo Schultz que veio saudar o congresso do PS.
O segundo gráfico apresenta o mapa destes resultados. A vermelho mais escuro estão os melhores resultados, considerando desde 1986 e de dez em dez anos a Europa ocidental, e a cor vai empalidecendo quando os resultados são piores. Conclusão: os partidos socialistas e social-democratas estão em alguns países a deixar de ser a charneira eleitoral. O centro está a minguar.
Para tudo isto Ferro Rodrigues apresenta uma explicação, e não vou abundar nela pelo risco de enviesar a interpretação das suas palavras, tudo se resumindo à ideia de que desiludiram os seus eleitores e apoiantes. Análise do congressista: isto não acontece com o PS porque recusou facilitar um governo de direita e se comprometeu com acordos inéditos à esquerda.
O PS tem a sua história, como os outros partidos. De facto, em Portugal e até ao recorde de Passos Coelho, os governos do PS tinham sempre sido mais privatizadores do que os do PSD e CDS. O acordo com a troika, e o famigerado PEC4 antes dele, e o programa eleitoral do PS em 2011 ainda antes dos dois, incluíam privatizações (os CTT, a TAP que este governo quis reverter parcialmente, as concessões dos transportes de Lisboa e Porto que este governo reverteu totalmente), ou reduções dos serviços públicos (congelamento de pensões, aumento de impostos sobre o trabalho, cortes no SNS) que hoje Ferro Rodrigues só poderia recusar em nome da sua “linha vermelha”. Há portanto aqui uma mudança porque tinha que haver. E há também um discurso que identifica essa vontade de mudança.
Conclusão então de Ferro Rodrigues: se outros partidos socialistas caíram por infidelidade, o português respondeu por fidelidade. A história é evidentemente um pouco mais complicada, o PS aceitou retirar do seu programa o “despedimento conciliatório” ou o congelamento das pensões por força dos acordos com a esquerda e possivelmente estaria a aplicar essas medidas liberais se tivesse tido maioria para isso. Mas na política aprende-se com os factos, que são teimosos, e portanto a declaração do presidente do parlamento na tribuna do seu congresso é para ter em conta. Como António Costa depois também reafirmou, o cumprimento desses acordos é o rumo de que o governo não se pode desviar.
Só que temos um problema a bordo. Esse problema é a Comissão Europeia, e não é só o Partido Popular Europeu a pedir sanções contra Portugal – são também alguns dos socialistas europeus, como Dijsselbloem e bastantes outros. O governo francês um pouco mais discreto, porque tem um incêndio no seu quintal, mas os socialistas do Norte e Centro da Europa são schaublistas encartados.
Portanto, mesmo que o centro perca força, está a tornar-se mais radical e mais agressivo e a Europa é o seu mote. É na Comissão Europeia e no BCE que se articulam os quartéis-generais da austeridade e, em particular, do grande desígnio que é vencer essas “linhas vermelhas” da defesa dos serviços públicos da democracia. Ou seja, o problema do PS é mesmo o cerne da sua identidade desde há muitos anos: seguir a Europa como o bom aluno.
Que Ferro Rodrigues não consiga acreditar nessa fábula, se bem percebi as suas palavras, e que António Costa esteja disposto a recusar as sanções, isso sim é a boa notícia de um pequeno passo para o governo e um grande passo para Portugal. Espero ainda que ambos saibam que a ameaça de sanções, que muito dificilmente se concretizariam, é um mero pretexto para aumentar as pressões sobre o próximo Orçamento.
Artigo publicado em blogues.publico.pt a 6 de junho de 2016
Comentários
Caro F.Louçã
Caro F.Louçã
Obrigado por mais esta excelente explicação do falhanço dos partidos socialistas? europeus.
Mas alguém tem dúvidas sobre o que faria o PS se tivesse a maioria absoluta?
Pressionado pelo "extremo
Pressionado pelo "extremo centro" e a direita europeia, o governo PS cederia à pressão europeia a curto ou médio prazo, de modo mais ou menos encapotado, com a cumplicidade dos meios de comunicação.
Há um consenso ocidental que caminha no sentido de integração política e económica na europa, a fim de ser melhor controlado pelas elites europeias e norte-americanas, para impedir governos de esquerda e afastar interesses russos e chineses. Os media favorecem essa visão, e retratam negativamente agrupamentos que se oponham a ela (se forem de extrema direita) ou fingem que não existem (se forem de esquerda).
O PS faz parte desse consenso, segundo o qual a integração pode avançar mais depressa ou mais devagar, mas nunca recuar. A comissão europeia e afins podem até fingir cedências, mostrando-se mais transparentes e democráticos, ou meter uma mulher à cabeça (feminismo!), desde que o projecto avance na mesma direcção.
Acredito que o PCP/Verdes sejam capazes de romper com esse consenso e tentar organizar o país para lidar com as consequências. Quanto ao BE? Gostaria de acreditar que também, mas depois do comportamento do Syriza, tenho dúvidas...
Penso que a questão central
Penso que a questão central que se coloca a muito curto prazo é de rasgar os de vez o Tratado Orçamental. Com ele não há mínima possibilidade de sair daquilo que ele mesmo é: a consagração do "consenso americano". Consequentemente urge preparar - e integrar no discurso político - a saída do euro. Sem emissão de moeda não há soberania nacional política. Consequentemente estar a postos para sair da chamada UE. Este é o ponto para o PS, para a demais esquerda e mesmo para sectores de uma direita conservadora sem expressão partidária. O resto é uma ilusão ou, como no caso de Tsipras, uma traição histórica.
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