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A Nakba da Palestina: entre casaco cor-de-rosa e LAW TRAIN

Este mês, assinalando a Nakba, a Assembleia da República aprovou um voto de solidariedade para com o povo palestiniano. A Nakba continua porque, apesar dos 68 anos de limpeza étnica, cativeiro, exílio, opressão e injustiça, alguém escolhe abster-se ou votar contra a liberdade. Artigo de Shahd Wadi.
Graffiti de Banksy em Belém. Foto Magne Hagesæter/Flickr

Era uma vez uma menina palestiniana de 12 anos, que se chamava Dima. Um nome em árabe que quer dizer chuva sem fim. No caminho para casa, ainda com o uniforme da escola, foi detida pelos soldados da ocupação israelita. As alegações que levaram a pequena Dima, com o seu doce sorriso de cereja, a ser detida baseavam-se no facto dela ser uma “ameaça à segurança de Israel”. Dima, que anda na 7ª classe, foi interrogada sem mãe, sem pai ao lado e nem sequer teve direito a um advogado. Foi julgada com o mesmo uniforme apesar do frio, porque os pais foram proibidos de lhe entregar o seu casaco cor-de-rosa. Durante alguns meses e numa cadeia sem condições mínimas, Dima foi a menina mais pequena nas prisões israelitas. Não é um conto, é, antes, uma história palestiniana verídica. E como esta há tantas histórias parecidas que ocorrem diariamente na Palestina ocupada.

Ao mesmo tempo que a pequena Dima estava a ser interrogada, desenhava-se neste lado da terra um projecto europeu coordenado por Israel intitulado LAW TRAIN. Entre as várias entidades europeias e portuguesas parceiras neste projecto, está o Ministério da Justiça de Portugal, e em particular a Escola da Polícia Judiciária. O projecto, pago pelos contribuintes – financiado pela União Europeia através do programa Horizonte 2020 –, tem como objectivo desenvolver a tecnologia que permitirá unificar metodologias para interrogatórios policiais. Um dos órgãos participantes neste projecto é o Ministério de Segurança Pública Israelita, que tem sob a sua alçada as forças policiais e prisionais israelitas. Estas forças são também responsáveis por aterrorizar a pequena Dima e, com ela, aproximadamente 440 crianças que estão em detenção militar israelita, no país onde há mais perseguições sistemáticas de crianças em tribunais militares por ano.

Estas forças policiais e prisionais já foram denunciadas pelas várias organizações de direitos humanos pelos maus tratos, violência física e psicológica contra o povo palestiniano, incluindo tortura, privação do sono, isolamento, negação de acesso a saúde e higiene, negação de visitas de familiares e, sobretudo, negação a um julgamento justo. A violência das forças israelitas estende-se a ameaças a familiar (detenção e ameaças sexuais), chegando mesmo à real demolição das suas próprias casas.

Este mês, assinalando a Nakba, a Assembleia da República aprovou um voto de solidariedade para com o povo palestiniano. Esta notícia, apesar da sua pouca cobertura mediática em Portugal, foi amplamente noticiada na Palestina. Na verdade, os votos de solidariedade têm acontecido apenas nos momentos mais sangrentos, sendo muito raro este tipo de manifestações por ocasião da Nakba, um tabu para o ocidente, tal como se a limpeza étnica nunca tivesse acontecido e como se esta não continuasse até aos dias de hoje.

Enquanto em Portugal se celebrava o início de um projecto para colher ensinamentos das “boas práticas” interrogatórias de um estado de apartheid, na Palestina comemorava-se o triste mês da Nakba, a catástrofe que se abateu sobre o povo palestiniano em 1948, que resultou na ocupação israelita da Palestina, depois da destruição de aproximadamente 500 cidades, vilas e aldeias e do exílio forçado de mais de dois terços da população palestiniana da sua terra.

Este mês, assinalando a Nakba, a Assembleia da República aprovou um voto de solidariedade para com o povo palestiniano. Esta notícia, apesar da sua pouca cobertura mediática em Portugal, foi amplamente noticiada na Palestina. Na verdade, os votos de solidariedade têm acontecido apenas nos momentos mais sangrentos, sendo muito raro este tipo de manifestações por ocasião da Nakba, um tabu para o ocidente, tal como se a limpeza étnica nunca tivesse acontecido e como se esta não continuasse até aos dias de hoje.

O voto foi apresentado pelo Bloco de Esquerda e aprovado com votos a favor deste e do PS, PCP, PEV e PAN, com as abstenções do PSD e CDS-PP e três votos contra, os de João Rebelo (CDS-PP), João Soares (PS) e Rosa Albernaz (PS).

Surpreendentemente, 68 anos depois, ainda há quem se abstenha ou vote contra a solidariedade humana, ignorando por completo que a Nakba se mantem nos nossos dias. A lista do que aconteceu na Palestina apenas no mês passado é extensa. Foram assassinados no checkpoint da Qalandiya, a sangue frio e sem justificação, os irmãos Maram e Ibrahim Taha. Centenas de casas foram destruídas em Jerusalém, Hebron e em Khirbet Tana, deixando centenas de famílias sem tecto. O número de detenção de mulheres por causa de publicações nas redes sociais subiu até 28. Gaza foi bombardeada outra vez. Quase todos os dias durante o mês passado foram detidos palestinianos e palestinianas incluindo menores. Netanyahu rejeitou a iniciativa francesa de Paz e, ao mesmo tempo, convidou para o governo Avigdor Lieberman, representante de um partido da extrema-direita, e que não pára de incentivar a morte dos palestinianos. O cofundador do Movimento de Boicote, Investimento e Sanções, contra Israel, foi proibido de sair da Palestina como tentativa (falhada) de castigar qualquer pessoa palestiniana de exercer o seu direito de defender a paz, a liberdade e a justiça. E esta lista de terror correspondente a apenas um mês poderia continuar para quase não caber num livro.    

A Nakba está mais feroz e desumana que nunca, não apenas por causa das tais práticas do apartheid israelita, mas também pelas cumplicidades que gera na Europa em geral e até aqui em Portugal. A Nakba continua porque. apesar dos 68 anos de limpeza étnica, cativeiro, exílio, opressão e injustiça, alguém escolhe abster-se ou votar contra a liberdade. A Nakba continua porque se organizam parecerias com entidades que violam diariamente os direitos humanos num projecto como LAW TRAIN, em vez de ficar ao lado de Dima Al-Wawi para que esta possa ter direito ao seu sorriso de cereja e a um casaco cor-de-rosa numa Palestina livre.


Shahd Wadi é doutorada em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra e integra o Comité de Solidariedade com a Palestina.

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